Os cinquenta artigos que compõem a coletânea A História Não Acabou foram quase todos publicados por Claudio Magris no Corriere della Sera entre 1999 e 2006. Ao lembrá-lo quase no final, o escritor sublinha a importância do meio utilizado para a forma tomada pela mensagem, declarando o jornal «um grande ginásio de luta kafkiana com a realidade e um laboratório de linguagem para a contar». Por isso todos esses textos, apesar de curtos e circunstanciais, travam um diálogo permanente, aberto ao leitor comum mas sempre exigente na forma, que materializa a aproximação criteriosa do autor com os acontecimentos que o vão confrontando. Só que, para este, o vínculo não impõe concessões ao fácil ou ao superficial, seja ao nível dos conceitos ou no campo da linguagem, tão comuns, como é sabido, entre os intelectuais que procuram a todo o custo o sucesso mediático. É pois um caminho árduo, mas por isso mesmo imprevisível e enriquecedor, o escolhido aqui para falar de muitas das feridas do presente e das opções que este nos vai fatalmente impondo.
Quando da atribuição em 2004 do Prémio Príncipe das Astúrias, o conjunto da obra de Magris foi qualificado pelo júri como inscrito na «melhor tradição humanista». Esta característica está bem patente ao longo de todo o livro, que emerge como um catálogo de problemas que desafiam alguns dos mais importantes valores com os quais se confrontam todos os humanos. Fala-se pois de laicidade, aqui liberta do equívoco que incorretamente a tem contraposto ao exercício da fé; fala-se de tolerância, na sua ligação complexa com a necessidade e os limites do diálogo entre as culturas; fala-se das relações entre ética e direito; fala-se do espírito religioso e da relação entre os Estados e as Igrejas; fala-se do diálogo como espaço e fundamento da crítica e não como expressão de lassidão; fala-se da involução política que tem vindo a pôr em perigo os valores elementares da democracia; fala-se da violência, do mal, do medo, da guerra; fala-se dos perigos levantados pelos micronacionalismos e das vias tortuosas pelas quais a memória vai fazendo o seu caminho. Particularmente eloquente é aliás o primeiro artigo, «As fronteiras do diálogo», também o mais extenso e o único que adota uma dimensão inequivocamente ensaística, no qual se abordam os perigos do relativismo ético como fundamento da indulgência e do diálogo, mas também da sua necessidade como arma levantada contra a imposição violenta dos «valores absolutos» que impõem tenebrosas dinâmicas de poder. Aí se conclui que «no contínuo confronto e diálogo com as culturas» será absolutamente necessário elaborar – uma ideia central que não é fácil de aceitar por toda a gente – «um mínimo de valores comuns não negociáveis, que implica uma dolorosa mas inevitável hierarquia de valores».
Entretanto, o autor vai sublinhando que, ao lado destas preocupações, associadas a debates mais gerais que atravessam inevitavelmente as sociedades contemporâneas, lhe importam também, e muito, as «bizarrias, delírios e mal-entendidos» associados a um verão – nome de estação usado aqui como metáfora do calor, da leveza e da liberdade – olhado como «estação e rosto da vida verdadeira». Na qual, como lembra com insistência, é possível e desejável «deixar-se embalar pelas ondas», viver despreocupadamente a ouvi-las rebentar na praia, desfazendo-se em espuma. Prolongando na aparente superficialidade a «intensidade insustentável da existência». Alguns dos capítulos deste volume deslizam pois, de uma forma visivelmente higiénica, até ao domínio do efémero, associado ao humor, ao sensorial e, acima de tudo, ao prazer intenso de viver «sem metas a atingir, obrigações e deveres a cumprir». Também ele, como deixa claro, parte essencial da antiga, poderosa e, apesar das ameaças de destruição, inapagável tradição humanista.
Claudio Magris, A História Não Acabou. Ética, Política, Laicidade. Trad. de José Colaço Barreiros. Quetzal. 256 págs.Versão revista de um artigo publicado na LER de setembro de 2011.