Três apontamentos ainda a propósito da execução pública de Kadaffi e do filho Mutassim, bem como da repercussão que a divulgação mediática desses momentos tem merecido. São também três dificuldades na leitura de um horror que podemos não aceitar mas teremos de compreender.
1. Mais chocante até do que a morte medonha do ex-líder líbio parece-me ser a do filho Mutassim. O que mais perturba a nossa sensibilidade é vê-lo, em fotografias e vídeos tomados depois da captura, bebendo água mineral por uma garrafa e fumando serenamente um cigarro. Percebermos que por minutos lhe foi oferecida a expectativa da salvação («pronto, acabou…»), seguindo-se a esta uma execução sumária e sem piedade. Dar e tirar repugnam a nossa consciência de matriz judaico-cristã, onde castigo e perdão são faces da mesma moeda. Mas nem todos pensam e agem como nós. E nem em todos os momentos ela tem validade. Na guerra, aliás, a primeira coisa a ser perdida é sempre a codificação ética aplicada em tempos de paz.
2. Não tem sido devidamente considerado o facto de o fim horrível de Kadaffi ter chegado às mãos da famosa brigada de choque de Misrata, que jurara apanhá-lo à mão. Misrata, relembre-se, foi a cidade que mais sofreu durante o cerco imposto pelas tropas do ex-ditador, devastada e quase integralmente transformada em escombros, com muitos milhares de mortos, incluindo-se entre estes doentes hospitalizados. Lembrando-nos disto mais facilmente entenderemos a dificuldade do perdão e a tontura da vingança. E a vontade de transportar o corpo para a cidade e de o expor de modo a que as vítimas pudessem olhar de frente o rosto do algoz. Tem milhares de anos e é universal a tradição da decapitação e da exposição entre ao povo vencedor da cabeça do chefe vencido.
3. Uma vez mais, a NATO, e em consequência «os americanos», estão a ser cegamente apresentados por alguns setores como principais responsáveis morais destes atos brutais e definitivos. É óbvio que esta barbárie filmada – e toda aquela que não pudemos ver – lhes escapou ao controlo e que, apesar de instrumentais no derrube de Kadaffi, teriam todo o interesse em evitá-la. Até pela consabida posição dúbia dos líderes ocidentais perante aquilo que se vinha passando desde há décadas na Líbia. Só quem não se esforce por entender a especificidade e a força dos conceitos de honra e vingança no mundo islâmico, ou os distúrbios potenciados por uma guerra civil, pode escandalizar-se com o que aconteceu no terreno e nas horas decisivas. Para nós lamentável e escusado, sem dúvida, mas para «eles» inevitável como exorcismo.