Agora que os destinos do Egito retornam à encruzilhada, com os militares ainda no poder, os muçulmanos moderados a ganharem as eleições e os radicais salafistas a obterem 30% dos votos expressos, reivindicando as regras medievais da sharia como fundamento da nova Constituição, vale a pena lembrar o nascimento da Praça Tahrir como território simbólico e elemento orgânico do encontro de credos e do combate pela liberdade.
Em 25 de janeiro de 2011, o dentista e escritor egípcio Alaa Al Aswany, fundador do movimento oposicionista Kefaya que havia anos preparava a mudança no Egito, chegou atrasado à manifestação da Praça Tahrir que iria marcar o fim do regime despótico de Hosni Mubarak. Quando foi avisado do que estava a acontecer, vestiu-se à pressa e correu para se juntar ao milhão de compatriotas que haviam saído à rua para exigir a queda do regime. Ali permaneceu dezoito dias, vivendo os acontecimentos revolucionários e assistindo ao renascimento de um país que em todo o mundo muitos olhavam como destinado a viver na indolência, na estagnação e sob o jugo da bota militar.
Este O Estado do Egito recua um pouco no tempo e reproduz mais de quatro dezenas de crónicas publicadas em jornais entre 2008 e 2010. Nelas se abordam temas tão diversos, que a revolução iria rapidamente passar para o centro das atenções, como o autoritarismo e a corrupção do regime, a estagnação económica, a brutalidade da polícia, a pobreza endémica, a repressão das mulheres, o cerco vivido pelas minorias cristãs, o lugar do fanatismo ou a construção da democracia. Em todos esses artigos se pode entretanto detetar uma leitura comum, ajustada a duas linhas coincidentes e complementares que o movimento revolucionário irá adotar. A primeira aponta para aquilo a que o escritor discutivelmente chama o «caráter especial» da generalidade dos egípcios, que os terá tornado «menos propensos ao conflito e mais inclinados ao compromisso», à recusa maioritária da violência e da tentação do extremismo político e religioso. A segunda, decisiva nos acontecimentos de janeiro, leva-o a considerar que os seus compatriotas «como camelos», suportando a repressão, as humilhações e a fome por muito tempo, mas com uma enorme capacidade, quando finalmente se revoltam, de o fazerem «subitamente e com um ímpeto que é impossível controlar».
Este livro ajuda-nos a mitigar a surpresa causada na maior parte do mundo pelo eclodir da aparentemente inexplicável revolução egípcia, e a compreender o impulso de esperança e de mudança que esta suscitou. Mas também a vislumbrar, por vezes mascarados, alguns dos seus piores inimigos.
Alaa Al Aswany, O Estado do Egito. Trad. de Lucília Filipe. Quetzal. 296 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Novembro de 2011.