Um número recente da série da Le Point sobre os «grandes mitos» é dedicado a Don Juan. Se seguirmos a definição do Houaiss, podemos considerá-lo a representação ou a súmula do «homem extremamente sedutor, conquistador, mulherengo». Do donjuanismo diz um dicionário popular ser «mania» de quem quer para si, como num ritual de posse, «fêmea após fêmea». Outras fontes associam a figura a uma personagem semilendária que «parece ter vivido em Sevilha», servindo a fantasia da sua existência de inspiração a autores que recorreram ao tipo do «conquistador brilhante, libertino e sem escrúpulos» ao qual as mulheres são incapazes de resistir. Se bem que depois, recorrentemente, como um dever, ele «as engane, despreze e rapidamente esqueça.»
Destaco dois artigos deste número da revista. No primeiro, Michel Delon, autor de um estudo recente com um título tão estimulante como Le Principe de délicatesse. Libertinage et mélancolie au XVIIIe siècle, contrapõe Don Juan a Casanova, o aventureiro italiano ao qual é frequentes vezes equiparado. A separação deve-se principalmente, para Delon, ao facto de Casanova arrebatar, por processos de sedução algo artificiais, o amor das mulheres, enquanto Don Juan o obtém naturalmente, pela sua própria maneira de ser. Um, o italiano, jogando sempre nos limites do cinismo, o outro, o espanhol, vivendo cada dia nas margens do absurdo. Num outro artigo, o sociólogo Michel Maffesoli define a figura do conquistador sevilhano como «arquetípica» de uma certa sede de viver o presente de forma total, permanente, que é muito característica do nosso próprio tempo. Aplicado na exaltação da paixão, vivendo cada relação numa espécie de estatuto de inocência, incapaz de considerar experiências anteriores, é, sob essa perspetiva, uma figura extremamente contemporânea.
No entanto, este tipo de considerações, porque parte de um modelo intrinsecamente masculino na ignorância da personalidade do par que é o seu complemento e o seu oposto, pode ser inteiramente subvertido. Não pela revalorização do próprio conceito de masculinidade, que mais não faz do que arquitetar outros modelos de ser «homem» ou de se definir como «humano», mas pela ignorância do padrão de mulher que numa boa parte do mundo se prepara para dominar o século XXI: liberta, segura de si e dos seus direitos, resistente a um jogo amoroso no qual desempenhava um papel acentuadamente passivo, recusando cada vez mais o papel de vítima da intervenção egoísta e violenta do sedutor «à moda antiga».
Poderia pois dizer-se, sob esta perspetiva, que o mito de Don Juan tenderia a morrer. Mas como todos os mitos são imortais e este não constitui exceção, o mais provável é que ressurja sob diferentes formatos. Associando, inevitavelmente, a figura do conquistador ao risco que esta condição comporta. Por isso, num dos artigos finais da revista, uma provocação ganha sentido: Dominique Strauss-Kahn é mostrado como um possível e impenitente Don Juan, porque vivendo a sensualidade perpétua do seu modelo. Diz-se então que, sendo esta tendência publicamente reconhecida, jamais poderia Strauss-Kahn recuperar a confiança do cidadão comum que talvez o conduzisse um dia à presidência da França. Se o mito de Don Juan comporta o estado de transgressão e de arriscada obsessão por parte de quem o personifica, esse alguém, apesar do rasto de ressentimento e desgraça que vai deixando, não deixa de ser uma criança grande. E uma criança grande não estará em condições de ser o Presidente de todos os franceses. Pelo menos por enquanto.