Logo no prefácio deste Da China, Henry Kissinger informa que desde a viagem secreta a Pequim no ano de 1971, realizada, segundo instruções de Richard Nixon, com o objetivo de restabelecer o contacto entre os Estados Unidos e aquele país e de preparar um pacto de defesa antissoviético, esteve neste país mais de cinquenta vezes. Algumas delas na qualidade de Secretário de Estado dos presidentes Nixon e Ford, outras nas de académico e investigador de temas de política internacional e diplomacia, outras ainda a título particular. Entre estas últimas, sem dúvida – Kissinger não o refere mas a capa do livro di-lo claramente – algumas na qualidade de presidente da Kissinger Associates, Inc., uma empresa de consultadoria internacional obrigatoriamente atenta às transformações das últimas décadas e à afirmação da China num âmbito global. Em todo o caso, transversal às diversas qualidades do visitante é o conhecimento que este foi acumulando da história e da realidade chinesas. Destaca por isso, nos capítulos iniciais, a forma como ao longo do século XIX, por vontade própria ou não, as autoridades do país começaram a pôr termo ao tradicional isolamento, tecendo uma diplomacia complexa e criteriosa destinada a controlar uma abertura imperativamente gradual. Um dos caminhos mais evidentes tomados por este volume resulta pois do esforço para, sem negar as vicissitudes históricas vividas na região e as sucessivas configurações que o poder político foi tomando, nele se demonstrar a existência de uma linha de continuidade estratégica, no campo das relações com o exterior, que o autor acredita remontar ao tempo dos mongóis e da dinastia Manchu e se terá estendido de modo quase ininterrupto até à atualidade.
Entretanto, a parte mais interessante é aquela que se ocupa com a descrição e a interpretação dos momentos, das conversações e das decisões nas quais o próprio Kissinger esteve envolvido. Como se sabe, a História contada na primeira pessoa, principalmente aquela que é escrita pelos protagonistas que presumem doar às gerações seguintes um importante legado histórico, contém sempre uma dose perigosa e escorregadia de autoelogio e de justificação das decisões tomadas. Este livro não escapa a esta vertigem, mas ressalvada tal limitação a quantidade de informação, a evidência dos pormenores e sobretudo as observações do punho do autor, se não são suficientes para transformá-lo num compêndio de História absolutamente fidedigno, deixam-nos, pelo menos, com a certeza de estarmos perante um padrão de obra que servirá, de modo imprescindível, o trabalho dos atuais e dos futuros investigadores da realidade chinesa e da diplomacia mundial no decorrer da segunda metade do século vinte. Projetando as bases para a compreensão de um prelúdio a uma obra inacabada de pacificação universal que o próprio Kissinger se encarrega, no final, de conceber. Adiantando o sonho, ou a profecia, malgrado as diferenças que os separam no campo da perceção do tempo e da História, de os Estados Unidos e a China, num futuro não muito distante, poderem vir a unir esforços «não para abalar o mundo, mas para o construir». Provavelmente, num retorno à dimensão bipolar que preencheu quase toda a segunda metade do século passado.
Henry Kissinger, Da China. Trad. de Freitas e Silva. Quetzal. 584 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Dezembro de 2011.