Logo pela manhã, um post da Helena Araújo relembrou-me um pormenor, associado à história dos símbolos, que tem tanto a ver com episódios passados da nossa vida coletiva como com situações agora mesmo diante dos nossos olhos. A imagem ou a silhueta da pomba tem servido em tempos e lugares diversos como sinal da paz, do amor, da maternidade, da gentileza ou da figura do mensageiro. De acordo com a tradição bíblica, após o Dilúvio, teria sido uma pomba enviada em demanda de terra firme que, ao regressar à Arca com um ramo de oliveira no bico, sinalizou a Noé o recuo das águas e a possibilidade de retomar a vida sedentária. Para uma boa parte dos cristãos, é também o sinal visível do Espírito Santo, essa parte imaterial da Santíssima Trindade que se não vê, que não se toca, mas que se sente, anunciando na Sua omnipotência e na Sua bondade, a fundação e a intervenção da Igreja. No século XX, todavia, a dimensão simbólica do pequeno ser alado passou a estar associada mais sistematicamente à ideia de paz ou à defesa militante do pacifismo, sendo recuperada, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, em publicações, emblemas e estandartes, por numerosas campanhas antiguerra ou de propaganda da não-violência.
Esta escolha começou no entanto a ser subvertida a partir de 1949, quando, em plena fase de projeção da Guerra Fria, o Conselho Mundial da Paz foi criado, adotando como sinal de identificação a pomba (ou a «pombinha»: em inglês pigeon e dove resolvem o problema…). Os seus objetivos eram formalmente justos e louváveis: o desarmamento universal, a defesa da soberania nacional e da coexistência pacífica, a luta contra o imperialismo americano, contra as armas de destruição maciça e todas as formas de discriminação impostas com recurso à violência. Na verdade, sendo uma organização patrocinada pela União Soviética e dinamizada por um grande número de partidos comunistas – que em regra lhe associavam, como figuras de proa no plano nacional, «companheiros de jornada» ou pessoas de destaque que seguramente influenciavam –, transformou-se num instrumento de apoio da política externa, igualmente agressiva, centrada na intervenção dos Estados do «socialismo real» ou nos interesses estratégicos dos chamados partidos-irmãos. Neste contexto, a pombinha da paz passou a voar apenas em rotas seletivas, determinadas pelos interesses estratégicos de um dos blocos armados em conflito. Atuava e denunciava agressões e crimes dos Estados capitalistas, em particular os patrocinados pelo governo de Washington, fossem eles reais, ampliados ou imaginados, mas silenciava quaisquer objeções a atos de violência cometidos pelo «outro lado», por mais evidentes que estes fossem, como aconteceu, para adiantar apenas três exemplos, aquando das intervenções soviéticas na Hungria, na Polónia e no Afeganistão.
Tais denúncias, e as respetivas campanhas, eram sempre apresentadas como sendo levadas a cabo em nome de uma Paz «absoluta», geralmente grafada assim mesmo, com maiúscula, nos comunicados do CMP, ou, mais tardiamente, do Conselho Português para a Paz e a Cooperação, o seu ramo local. Com o desaparecimento da URSS, esta política, apesar de ter perdido impacto em termos de capacidade de intervenção e na clareza dos objetivos estratégicos, não deixou no entanto de se manter, sendo neste momento uma das responsáveis matriciais pela política de «paz podre» que tende a desculpabilizar a ação agressiva dos governos contra as suas próprias populações em Estados como a China, a Síria ou o Irão, por considerar como inimigos principais, ou únicos, os Estados Unidos, Israel e os países da NATO. Obviamente culpados de muitos males mas sem direitos de exclusividade no ramo. Ora é este logro que muitas pessoas genuinamente adeptas de um mundo melhor, justo e pacificado frequentes vezes alimentam. Ao considerarem a paz como um valor absoluto e integrador da soberania dos Estados, ao não distinguirem critérios de proporção no uso da força necessária para evitar o pior – isto é a ocupação, a tortura, a destruição, a morte –, confundem os inimigos, instigam a prevalência da tirania e legitimam uma «paz dos cemitérios» que, objetivamente, não se distingue muito daquela um dia projetada por Herr Hitler para esse ordeiro, quieto e tranquilo Reich de Mil Anos.
Fotografia: Foi também em nome «da Paz» que os tanques do Pacto de Varsóvia entram em Praga (Josef Koudelka, 1968)