É provável que muitos portugueses, mais preocupados com a aparente traição de Irina Shayk ao namorado Cristiano ou com as desculpas esfarrapadas do capitão do navio italiano que se deixou naufragar, não tenham ainda tomado consciência das alterações consumadas hoje nas leis do trabalho. E que demorem até a compreender verdadeiramente a situação agora criada. Mas estas mudanças configuram a primeira alteração radical da orientação seguida desde os anos de 1974-1975 e modificam de maneira profunda as relações entre patrão e empregado com as quais nos habituámos a conviver ao longo de tantos anos. Junte-se a isto, como lembra José C. Nogueira a título de exemplo do que vai acontecer, que mesmo a pequena parte que conheceu as relações pré-Revolução nunca viu uma indemnização por despedimento tão baixa como a que entra agora em vigor para os novos contratos de trabalho. Este é, sem dúvida, o momento decisivo da Contra-Revolução, aquele pelo qual, desde há perto de quarenta anos, gerações de empresários de vistas curtas e de políticos de uma direita débil, cobarde e envergonhada tanto esperaram, conseguindo agora o que sempre quiseram, e de mão-beijada, por intervenção da crise financeira, dos mandatários do capitalismo internacional e, que fique para a História, da iniciativa da atual geração de dirigentes do PSD (já que o CDS segue a bordo por circunstâncias particulares e apenas ajuda à festa).
O trajeto começou cedo. Logo após o 25 de Abril, e ressalvando o idealismo voluntarista de um grupo muito restrito de social-democratas que esteve na origem do partido – lembro Sá Carneiro, Magalhães Mota ou mesmo Pinto Balsemão –, este rapidamente se encheu, desde as concelhias até ao topo, de um misto de «barões» endinheirados e de tecnocratas em ascensão, que viam na intervenção política apostada em reduzir o papel do Estado uma forma de controlar os excesso revolucionários e de modernizar o país «à europeia». Juntava-se-lhes então um grande grupo de cidadãos sem qualquer perspetiva política que tinham entrado no PPD, depois PSD, da mesma forma que, antes de 1974, teriam entrado na União Nacional salazarista ou na sua herdeira, a «apolítica» Acção Nacional Popular de Marcello Caetano. Falemos claro: quem conhece ou conheceu a maioria das pessoas que tiveram um papel minimamente destacado dentro do Partido sabe que se formaram e sempre atuaram integradas naquela «elite de mandantes» que o governo do Estado Novo construiu e alimentou, impedindo em Portugal a emergência de uma burguesia moderna, pragmática, capaz de sujar os punhos da camisa e com alguma sensibilidade democrática. As exceções não passaram disso.
Essa amálgama ainda era, no entanto, dirigida por algumas pessoas polidas e cultas, com a formação cívica feita no contacto com a renovação da política europeia saída do pós-guerra e com um mínimo de sensibilidade para as questões sociais. E tinha a suportá-la uma conjuntura internacional favorável à afirmação destes fatores. Ora aquilo que se passou muito recentemente, marcando a atualidade dramática que estamos a viver, é que essa geração deu lugar a outra, sem formação política de teor humanista, sem experiência fora da obtida no aparelho partidário e nos corredores do pequeno e do grande poder, com uma visão meramente gestionária da política e da economia, e, para tudo piorar, quase sempre sem experiência de vida. É a geração de gente que formou a sua visão do mundo entre reuniões da jota, assembleias da empresa da família e chás das cinco, crescendo no ódio a tudo aquilo que cheirasse a direitos dos trabalhadores, a intervenção solidária do Estado e, de facto, a democracia. Gente pautada pelos valores básicos de um liberalismo oitocentista embelezado que se viu agora alcandorada ao poder dentro de um regime cujos fundamentos constitucionais, na realidade, sempre desprezou. É por isso que a resistência à imposição deste modelo passa, inevitavelmente, por enfrentá-la. Por uma reativação razoável da luta de classes «inventada» por Marx e pelo abandono, até novas ordens, do reformismo em política. Impossível? Veremos.