Grandeza de Marx – por uma política do impossível, de Sousa Dias (n.1956), lançado no início de Novembro pela Assírio & Alvim, é um excelente ensaio sobre a crise, o descrédito, a possibilidade e a necessidade da ideia comunista e do retorno a um Marx fora dos altares e longe dos pedestais nos quais desgraçadamente o equilibraram. Voltarei adiante a este livro, mas aqui ficam já dois fragmentos para despertar, espero, o apetite de quem se esforce por não navegar às cegas no lado esquerdo desta floresta do real que nos cabe atravessar.
Porquê escrever afinal sobre Marx, porquê permanecer marxista, quando o marxismo, ensombrado por conotações históricas monstruosas, crepusculizou como filosofia e como ideologia? Porquê insistir na grandeza e, mais ainda, na actualidade de Marx? […] Marx não criou o comunismo, que o antecedeu de séculos, mas foi quem fez essa Ideia descer do céu das utopias à vida histórica dos homens e transformar-se no grande projecto revolucionário do mundo moderno, mostrando que o capitalismo tinha trazido consigo as condições materiais (económicas e sociais) para essa transformação.
[…] O que sem dúvida morreu, o que está morto e bem morto, é uma conceção do comunismo como «solução», uma concepção marxista, marxiana, da Ideia comunista como Ideia de uma comunidade garantida, na certeza ou na «necessidade» da sua vinda, na sua possibilidade e previsibilidade, pelas «leis» da história, do movimento «materialista dialéctico» da história, para dar lugar a um conceito de comunismo como «problema», «hipótese», «impossibilidade», ou seja, a uma Ideia de comunismo reposta na sua constitutiva problematicidade rasurada, deixada sem rasto ou vestígio, já pelo próprio Marx – por, repita-se, um certo espírito de Marx – e completamente, dogmaticamente, pelo marxismo.
Ou seja, e para tudo dizer com clareza. O que falhou, o que fracassou, o que acabou derrotado nas experiências dos poderes comunistas não foi a Ideia de comunismo, inderrotável, irrevogável no seu espírito. Foi unicamente uma dada apropriação, cientificação ou liturgização da Ideia, e com isso uma determinada estratégia, um modelo, uma ortodoxia, um determinado autoritarismo ou autoridade do partido-vanguarda, do partido-consciência, Cogito proletário («ninguém pode ter razão contra o partido», nenhum proletário, dizia Trotsky, porque o partido é a razão, a forma consciencial e organizacional do proletariado como classe revolucionária), um determinado estatismo ou identidade partido-Estado, e, como corolário, um burocratismo nunca visto, um totalitarismo ou terror como tirania da Ideia «científica». Por outras palavras, o que fracassou não foi a Ideia comunista mas apenas uma forma de usurpação da Ideia, quer dizer também, uma forma de perversão ideológica, de ideologização dogmática como razão de Estados totalitários, do pensamento de Marx, do espírito mais profundo da sua herança, espírito […] irredutível à dogmatologia marxista-leninista (estalinista, maoísta, etc.).