Logo em 1948, quando começou a ser publicado o conjunto de seis livros da autoria de Winston Churchill sobre as circunstâncias e as peripécias que rodearam a Segunda Guerra Mundial, depois condensados nestas Memórias agora traduzidas, um dos seus opositores políticos não hesitou ao proclamar que o antigo primeiro-ministro tinha, de facto, escrito principalmente sobre si próprio. Não era no entanto essa, como seria de prever, a opinião do próprio sobre o trabalho que, com uma tenacidade invulgar em quem já ultrapassara sete décadas de uma vida ativa, acabara de produzir e de tornar público. Procurando atribuir um sentido de rigor e de honorabilidade à obra, Churchill insistiu então em afirmar que, embora deixasse os julgamentos sobre o seu papel no decorrer do conflito para o trabalho que de futuro seria levado a cabo pelos historiadores, de modo algum abdicava de ser um deles.
Este objetivo preciso não foi, no entanto, inteiramente alcançado. Escritos de uma forma intensa, afirmativa, cheios de pormenores que garantem o interesse do leitor e ampliam o seu valor testemunhal, os seis grossos volumes editados – em larga medida responsáveis pela atribuição do Nobel da Literatura em 1953 – faziam de facto ouvir a voz de alguém mais próximo do protagonista que do observador. Uma vez que para este volume único grande parte dos detalhes teve de ser omitido ou abreviado, esse aspeto tornou-se ainda mais notório. Aqui o tom grandiloquente inicial mantém-se, mas ao mesmo tempo são ampliadas as formulações tendentes a exprimir juízos de valor sobre os factos, os personagens e o próprio caminho tomado pelos acontecimentos, que não podem fazer parte de um vocabulário historiográfico forçado a incorporar critérios de objetividade e distanciamento crítico. Expressões como «convicções justas», «bom senso» ou «prudência razoável», associadas a recorrentes juízos de valor sobre os protagonistas, terão sem dúvida ampliado o leque de leitores, mas não contribuíram para oferecer, da época e dos acontecimentos, um discurso rigoroso e equitativo.
O caráter negativo desta nota inverte-se completamente se aceitarmos o livro como uma expressão documental do papel do autor nos episódios e na época que reporta. Então estas páginas tornam-se subitamente densas, esclarecedoras e estimulantes, revelando as qualidades e as fraquezas dos protagonistas, os seus tiques, hesitações e rasgos, a importância do fortuito na tomada de muitas das decisões e no curso dos acontecimentos, bem como os momentos de aproximação, mas também de desconfiança, que se foram sucedendo nos contactos entre os governos e as chefias ao longo do período que precedeu e cruzou o conflito. É na apreciação destes pormenores que nos começamos a aproximar do curioso juízo proclamado pelo próprio Churchill quando escreveu que «a guerra é, acima de tudo, um catálogo de asneiras». No decorrer deste encontro literário entre o velho homem de ação, decisivo no lançamento do esforço de guerra britânico e na vitória dos Aliados, e o trabalho de escrita do investigador e memorialista em que se tornara, percebe-se o sentido tomado por essa frase aparentemente gratuita. Na realidade, ela valorizava o papel de quem teve de decidir, administrando essas inevitáveis asneiras. No uso da dose de «sagacidade» e de «paciência» da qual se cria detentor e que considerava, em tempo de guerra como no de paz, fatores decisivos para a boa governação.
Winston Churchill, Memórias da Segunda Guerra Mundial. Trad. de Manuel Cabral. Texto Editores. 1072 págs.Versão revista de uma nota publicada na LER de Fevereiro de 2012.