Em A Ideia de Europa, saído em 2006, escrevia o crítico, filósofo e ensaísta George Steiner (a citação é longa mas vale a pena, embora só depois dela este post verdadeiramente arranque):
A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia. É o clube dos espirituosos e a posta-restante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky.
Note-se as diferenças ontológicas. Um pub inglês e um bar irlandês têm a sua própria aura e mitologias. O que seria da literatura irlandesa sem os bares de Dublin? Onde, a não existir o Museum Tavern, teria o Dr. Watson encontrado Sherlock Holmes? Mas estes estabelecimentos não são cafés. Não têm mesas de xadrez, não há jornais à disposição dos clientes, nos seus suportes próprios. Só muito recentemente o próprio café se tornou hábito público na Grã-Bretanha, e mantém o seu halo italiano. O bar americano desempenha um papel vital na literatura americana e em Eros, no carisma icónico de Scott Fitzgerald e Humphrey Bogart. A história do jazz é inseparável dele. Mas o bar americano é um santuário de luzes desmaiadas, muitas vezes de escuridão. Vibra com música, muitas vezes ensurdecedora. A sua sociologia e o seu tecido psicológico são permeados pela sexualidade, pela presença – desejada, sonhada ou real – de mulheres. Ninguém redige tomos fenomenológicos à mesa de um bar americano (cf. Sartre). As bebidas têm de ser renovadas, se o cliente quiser continuar a ser desejado. Há «seguranças» que expulsam os indesejáveis. Cada uma destas características define uma ética radicalmente diferente daquela do Café Central ou do Deux Magots ou do Florian. «Haverá mitologia enquanto existirem pedintes», declarou Walter Benjamin, um connaisseur apaixonado e peregrino de cafés. Enquanto existirem cafetarias, a «ideia de Europa» terá conteúdo.
Em Coimbra, onde basicamente vivo há mais de quarenta anos, esta profecia de Steiner parece confirmar-se à evidência, correspondendo a decomposição da ideia europeia, cada vez mais declarada aos nossos olhos, ao desaparecimento daquela que foi, outrora, uma das marcas da cidade. Falo do espaço quase cosmopolita – paralelo ao popular, futrica, com o qual aquele raramente convivia – no qual estudantes, professores, escritores, artistas, jornalistas, profissionais liberais, autodidatas e outros cidadãos «cultivados» ou com algum tempo livre encontravam no café uma componente essencial das suas vidas e um vínculo existencial ao que acontecia dentro e fora do país. Tudo isso desapareceu sem substituto à altura. Agora já quase não existem na cidade «cafés de estar», lugares calorosos, acolhedores, a pedir que deles se faça escritório, prelúdio de garçoniere ou uma segunda casa. Nem grandes esplanadas ao sol, onde passar horas bebericando cervejas, a ler ou a conversar, a ouvir música ou simplesmente a olhar.
A minha primeira memória da cidade foi a de uma visita na qual, junto ao café Montanha, um familiar, talvez o meu pai, apontou para um grupo de jovens de negro e ar blasé («olha, aqueles é que são os existencialistas»). Quando cheguei, em 1969, tornei-me no entanto cliente d’A Brasileira. O lugar natural para quem se julgava um intelectual em formação e um oposicionista avant la lettre. Fiz logo parte da mesa «dos surrealistas», um grupo de escanzelados imberbes que julgava ter como missão no mundo destronar a mesa «dos neorrealistas», povoada de gente respeitável e com currículo – Joaquim Namorado era sem dúvida a voz mais sonora – a quem desejávamos uma rápida reforma para que chegasse a nossa vez. Lembro-me de Paulo Quintela a perorar, de Mário Vilaça vigiando a rua da mesa do canto, até do Juan Carlos Oviedo, sozinho, a escrever à máquina, para pasmo dos basbaques. E de muitos outros que vêm ao caso mas não cabem agora aqui. Foi essa a «minha» Brasileira, na qual o «café de saco», os imperiais bifes e o bilhar do primeiro andar eram apenas um pormenor. Por isso, o que me perturba um pouco nesta Brasileira ontem reaberta não é tanto o trabalho de arquitetos e decoradores – não, não gosto, se querem saber: acho tudo uma comarca inóspita, uma loja mais perto da salsicharia do que de um espaço a humanizar, e isto nada tem a ver com o desamor da arte contemporânea, que até me assiste –, é aquilo ser enjoativamente apresentado como um regresso à velha tradição da Brasileira e da Coimbra de outras eras. O tanas é que é!
Adenda: um excelente post de João Ventura sobre «A Europa dos cafés».