O passado, modos de usar, de Enzo Traverso – saído em 2005, antes de L’Histoire comme champ de bataille –, trata principalmente daquilo a que Habermas chamou «o uso público da história». O trabalho deste historiador e cientista político italiano tem vindo a ser preenchido com o estudo de épocas e de temas contemporâneos com os quais conflituam interesses atuais e que por esse motivo permanecem perturbantes, como acontece com a «questão judaica», o Holocausto, o totalitarismo, o fascismo, a violência nazi, o comunismo ou o eurocentrismo. Em conexão com todos eles, Traverso tem-se ocupado com os problemas difíceis mas incontornáveis que levanta a conexão entre história e memória. Aquela proximidade com o presente torna entretanto o tratamento destes assuntos algo que não pode deixar de dialogar – independentemente do rigor inerente à intervenção própria dos historiadores – com as suas escolhas políticas, com as repercussões do seu trabalho entre os outros profissionais do mesmo ofício e, acima de tudo, com o impacto junto dos setores da opinião pública que vão acolhendo os ecos do que dizem ou escrevem.
Este livro pequeno mas precioso decompõe de um modo pedagógico, sempre associado a contextos precisos, as linhas que aproximam os diferentes segmentos da memória coletiva (a «forte», tendencialmente hegemónica, e a «fraca», silenciada ou alternativa), a escrita histórica do passado e também as políticas da memória, fazendo-o sempre em diálogo com os temas que Traverso conhece bem e com a produção historiográfica recente que com eles converge. Mostrando de que maneira, perante um século marcado pela violência, a memória reivindica os seus direitos sobre a forma como esse passado é representado, na presunção de que a história, como recordou Paul Ricoeur, «não é mais do que uma parte da memória, escreve-se sempre no presente.» E quando tantos fatores, da indústria cultural aos museus, das comemorações aos programas educativos, contribuem para que se faça dessa memória do passado partilhado uma espécie de religião civil, pautando a perceção que as sociedades têm de si próprias, o tema torna-se particularmente importante.
Este passado cumpre muitas vezes um papel instrumental: conservar a recordação dos totalitarismos de forma a legitimar a ordem liberal, validar a ocupação da Palestina para evitar um novo Holocausto, invadir o Iraque para que se não repita Munique. Pode também trilhar caminhos mais discretos, por vezes mais subterrâneos, com uma dimensão crítica ou de resistência que define experiências de emancipação, de utopia e de revolta contra os poderes hegemónicos. A escrita da história é pois o resultado de um trabalho que emerge dessa trama complexa de recordações pessoais e partilhadas, de saberes herdados, de tradições literárias, de constrangimentos e de questionamentos políticos sempre ancorados no presente. É essa trama subterrânea que este ensaio expõe de maneira brilhante mas também transparente. Incorporando um vasto debate intelectual – de Halbwachs a Nora e a Ricoeur, de Benjamin a Yerushalmi, de Ginzburg a LaCapra e White – que reformula as fronteiras da história e questiona de um modo crítico e positivo os seus processos de escrita. Tornando-a um território vivo e não o eco de um museu decrépito.
Enzo Traverso, O passado, modos de usar. História, memória e política. Trad. de Tiago Avó. Edições Unipop. 196 págs. Versão revista de nota saída na LER de Abril.