Por hábito ou falta de atenção, a figura de Henrique Mitchell de Paiva Couceiro (1861-1944) tem sido algumas vezes associada de um modo injustamente exclusivo às incursões monárquicas nortenhas de 1911 e 1912, lançadas contra a Primeira República sem efetivo poderio militar e outras consequências que não o reforço do regime que pretendiam combater. Surge também ligada à sua condição de Presidente da Junta Governativa do Reino, assumida quando da efémera experiência da Monarquia do Norte – essa «Traulitânia» tão rebaixada no campo republicano – proclamada no Porto em janeiro de 1919. O estrondo da sua atuação durante esses anos bastou, no entanto, para que em torno da memória que dela sobrou se fosse construindo uma «lenda negra», que os republicanos facilmente ergueram, e outra de sinal inverso, que os adeptos da antiga ordem monárquica fizeram por manter, transformando-o em paladino e símbolo de uma causa que não queriam dar por perdida. Para evitar a perspetiva parcial, o impacto da sua intervenção pública deve por isso ser procurado dentro de um arco temporal mais alargado. O resultado final será o reconhecimento de um Quixote português, batendo-se, como o original, por idealismo e uma certa noção de honra, em nome de um Portugal que a corrente do tempo empurrava já para o passado.
A biografia de Paiva Couceiro, marcada pela ascensão rápida numa carreira militar iniciada aos dezassete anos, passou por três fases distintas e complementares. À primeira definiu-a uma ligação profunda a África, por muito tempo o cenário central da sua vida. Abre com o comando da Cavalaria da Humpata, em Angola, onde entre 1889 e 1891 participou em viagens de reconhecimento e «campanhas de pacificação», na realidade agressivas iniciativas militares destinadas a impor a soberania portuguesa em territórios nos quais ela permanecia meramente formal. Após uma curta estadia na metrópole, combaterá integrado na Legião Espanhola na guerra do Rif (1893-1894), seguindo depois para Moçambique, onde, sob o governo de António Enes desempenhará um papel crucial nos combates contra os potentados autóctones que procuravam resistir à imposição da autoridade portuguesa. Superintendeu então as operações que conduziram à prisão e à deportação de Gungunhana, sendo Mouzinho de Albuquerque um seu subordinado. De regresso a Portugal, será proclamado «benemérito da Pátria» e nomeado conselheiro do rei. Ocupará então cargos militares e políticos de destaque, chegando mesmo, entre 1906 e 1907, a ser deputado, vinculado ao Partido Renovador Liberal e a João Franco. E nos dois anos seguintes será o Governador-Geral de Angola. A segunda fase, a mais conhecida, foi a da resistência à proclamação da República, que tentou impedir logo a 4 e 5 de Outubro, tendo mesmo sido o único oficial que neste dia fez fogo sobre o acampamento revolucionário da Rotunda. Apenas depôs as armas quando soube que o rei D. Manuel tinha deixado o país a caminho do exílio, apesar da vitória militar monárquica parecer assegurada. Pediu então a demissão do exército por desejar manter «a honra de servir uma só bandeira» e foi em consonância com esta atitude que chefiou as incursões armadas antirepublicanas, cumprindo depois um papel fulcral na tentativa restauracionista de 1919. A terceira e última fase da vida acompanhará os anos da ascensão política de Salazar e os primeiros tempos do Estado Novo, tendo sido marcada por uma crescente divergência em relação a muitas das opções do novo governo.
É da etapa da resistência ativa à República, mas sobretudo da subsequente a 1919, que trata a maior parte dos apontamentos diarísticos, das cartas enviadas e recebidas, dos panfletos e dos artigos de jornal, até agora conservados inéditos ou esquecidos, que, como parte do enorme acervo deixado pelo autor, foi agora publicada com a organização e uma introdução do historiador Filipe Ribeiro de Meneses. Ela permite, no conjunto, projetar um olhar mais profundo sobre a vida e a atividade pública de Paiva Couceiro, libertando-as da ideia mais comum segundo a qual, após o desastre da Monarquia do Norte, este teria entrado numa fase de progressiva obscuridade. Todavia, não foi assim que as coisas aconteceram, como se pode agora perceber e Ribeiro de Meneses reconhece de imediato na introdução, quando, ao enfatizar a dimensão e a qualidade do espólio, deixa claro que o militar continuou a desempenhar um papel de relevo na oposição à Primeira República e que a sua atividade intelectual no campo da reflexão política prosseguiu também com vigor.
Para compreender o sentido e o registo mais essencial da documentação agora posta ao dispor dos investigadores e do público, é necessário, naturalmente, conhecer o trajeto militar e cívico do seu autor, mas principalmente compreender o processo de formação das suas convicções. Em Um Herói Português, a biografia que Vasco Pulido Valente escreveu há cerca de uma década para a Análise Social e republicou como livro em 2006 (Ed. Alêtheia), ficaram expostos contornos que esta documentação vem corroborar, mostrando o coronel Paiva Couceiro como homem em quem ao «ardor religioso, militar e patriótico em que fora educado» se sobrepôs sempre um certo padrão de coragem e iniciativa que o impeliram para a ação. Sob a perspetiva da democracia representativa de inspiração demoliberal, o seu anti-individualismo e o seu antiparlamentarismo, que tinham como contraponto a defesa de um autoritarismo benévolo, apoiado na ordem, na hierarquia e na tradição, não resultam particularmente simpáticos. No entanto, estes foram sempre temperados por um fortíssimo ethos, capaz de transformar as suas escolhas mais em gestos de ousadia – embora não de bravata – do que em opções de alguém condicionado pela ambição e o calculismo. Desta forma deverá, aliás, ser interpretada a sua aproximação, fugaz e pouco pacífica, às convicções do Integralismo Lusitano.
Todavia, a rígida afirmação dos princípios seria visivelmente suavizada nos últimos anos de vida, numa altura em que a sua intervenção se encontrava já poderosamente condicionada pelo isolamento forçado e pelo peso da idade. Então, foi uma vez mais a gestão das colónias que principalmente o preocupou, discordando da opção salazarista de a submeter aos limites impostos pelas metas financeiras do Estado e advogando uma intervenção bastante mais ativa nos territórios africanos. Nessa escolha, continuava a considerar a sua experiência pessoal e a sua intervenção como decisivas. Por isso, em novembro de 1937, na dura carta dirigida a Salazar que lhe valeria a detenção pelo regime e um exílio de dois anos em Espanha, se referiu à forma favorável e reconhecida como considerava que o povo português continuava a confiar no seu «desinteresse», no seu inequívoco «patriotismo», e no modo como ele próprio avaliava «uma vida inteira com uma cara só». Foi esta uma boa forma de resumir uma conceção de honra e uma persistência de convicções que, por aquela época de capitulações perante o ascendente autoritário do regime, se mantinha rara e exigente. E talvez seja esta a melhor maneira de, independentemente da distância política que possamos ter das suas escolhas, melhor conservarmos a sua memória. Que este livro vem refrescar, ampliando muito o conhecimento que temos do seu autor.
Na capa de um número de 1902 do jornal humorístico A Paródia, publicado por Rafael Bordalo Pinheiro, Paiva Couceiro surgia representado como um Quixote, investindo a eito, na savana africana, contra invisíveis inimigos. Apesar da intenção satírica, será provavelmente essa a representação mais justa que dele hoje podemos conceber. Avançando, com voluntarismo e convicção, na defesa, cada vez mais solitária, dos ideais a contracorrente aos quais se conservou fiel. Ele mesmo o sublinhou pelo seu punho, quando na referida carta a Salazar o invetivou: «Venha para o ar livre, e ponha o ouvido à escuta, a ver se ouve, lá das profundezas da História, a voz de Portugal verdadeiro». Que o velho coronel, o Paladino que os seus antigos apoiantes veneravam, acreditava conhecer e interpretar da melhor forma. Talvez melhor que ninguém.
Paiva Couceiro. Diários, Correspondência e Escritos Dispersos. Organização e introdução de Filipe Ribeiro de Meneses. Prefácio de Miguel de Paiva Couceiro. Publicações Dom Quixote. 806 págs. Texto saído na LER de Abril.