Não cheguei a ter grandes esperanças, e, como toda a gente, agora ainda tenho menos, no futuro promissor das «primaveras árabes». Foi a sua parecença consigo próprios aquilo que muitos ocidentais vislumbraram de positivo nas praças de Tunes e do Cairo, naqueles grupos de jovens de aspeto cosmopolita, de funcionários de barba diligentemente aparada e de mulheres maquilhadas, sexos aliados, telemóveis de última geração, que falavam inglês e gostavam dos mesmos filmes e leituras dos quais gostavam os seus contemporâneos de Estocolmo, Munique ou Quioto. Foi a quimera de um mundo, outro e o mesmo, no qual todos os discursos e compromissos fossem possíveis e aceitáveis. Foi, por momentos, um certo esquecimento da diferença real no ser e no viver daquelas latitudes. Alguns viram até, por aqueles dias e naqueles movimentos, o acordar de utopias perdidas, de projetos abandonados, o regresso à ideia de um mundo feito de entendimentos e de paz.
E todavia, se por um instante fechássemos os olhos e os ouvidos, sabíamos que assim não era e assim não poderia ser. De Rabat a Cabul, na sua flagrante diversidade, o chamado mundo árabe nem por um momento deixou de ser um campo de contrastes, de diferenças, de equilíbrios precários, de desigualdades extremas, de enormes manchas de analfabetismo, de conhecimento e laicismo a tentarem medrar num território minado pela intolerância religiosa. Neste mundo, seria sempre fácil antever, e alguns fizeram-no logo, a tempestade que ameaçava já a provisória bonança. A reemergência da intolerância, da força bruta, da corrupção, do oportunismo, que minam qualquer sociedade mas sobretudo aquelas nas quais não exista uma opinião pública sólida, que saiba e possa denunciá-los sem receio de terríveis represálias. E, mesmo ao lado, ameaçador, um intervencionismo externo, sempre pronto a impor um falso equilíbrio, dependente de inconfessados interesses.
Assim acontece no Egito, na Líbia, na Síria. Assim acontece até em territórios cuja emancipação, historicamente justa, é já ameaçada pelas amarras da intolerância dos fanáticos mascarados de libertadores, como ocorre em alguns pontos da própria Palestina. Por isso, qualquer posição sobre o futuro próximo deste mundo que aqui mora a lado passa sempre pelo ceticismo da observação, pela moderação da análise, pela rejeição das certezas, da atitude acrítica que divide a vida e o planeta entre os bons e os maus, os puros e os pecadores, os indubitavelmente perfeitos e os inexoravelmente maus. Por isso, qualquer tomada de partido a propósito deste universo mutante precisa manter-se alerta em relação aos inevitáveis logros, perante um cenário de certeza que é o de que as forças efetivamente poderosas pouco interesse têm na imposição da democracia não adjetivada ou de uma verdadeira justiça social. A ingenuidade não pode ser, neste caso, irmã da razão. Mas esta também não pode ser cúmplice da iniquidade.
Isto significa que a cada momento, em cada lugar, perante este universo instável e indeciso, tomar posição em situações-limite jamais pode depender de um estado de cegueira, com uma preocupação mais voltada para a imposição de princípios do direito do que com a vida das pessoas comuns, a morrer debaixo da bota militar, seja ela qual for. Ser, neste momento, a favor de uma tomada de posição firme e imediata da comunidade internacional para acabar com os massacres na Síria não significa ignorar os perigos imensos da realidade que lhes pode suceder, ou as armadilhas colocadas de um lado e do outro das barricadas lançadas no terreno. Significa «apenas» defender o que é mais essencial em qualquer lado. Como aconteceu em Madrid, Paris ou Sarajevo, a defesa elementar da vida das pessoas comuns e o fim dessa crueldade sanguinária fundada na ação das armas. Para que mais tarde, essas pessoas, sobrevivendo ao destino que lhes estava destinado, possam enfim projetar a sua imprescindível primavera.