Otelo: uma biografia

Otelo

Paulo Moura é um excelente jornalista, de quem sou fiel leitor. Mas esta crítica negativa é condicionada por um imperativo: contornar o nevoeiro que um livro como este pode lançar sobre a imagem pública e a representação histórica da intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho. Talvez o resultado pudesse ser outro se o posfácio, que poucos lerão, tivesse sido antes um prefácio, que toda a gente lê. Porque nele o autor aclara algumas das suas escolhas. Estas são, obviamente, tão legítimas quanto discutíveis. E muito discutíveis. Como é possível, por exemplo, compatibilizar um trabalho, descrito como «biográfico», e ainda que não seja «um livro para académicos» (qualificativo pouco preciso nele sugerido como restritivo), com a afirmação de que o autor decidiu ser «mais fiel às recordações do que ao passado»? E se se considera que é uma biografia «narrativa e interpretativa, não crítica», isenta de «juízos de valor», como excluir estes do território das recordações, que nunca sem manifestam sem a subjetividade de quem recorda? Muitos trabalhos sobre a conexão entre história e memória, na relação com a intervenção do testemunho dos atores dos factos vividos, tratam este assunto, procurando soluções que este livro exclui do horizonte.

Uma delas tem a ver com o facto de a sua principal fonte de informação ser o próprio Otelo. Tal resulta claro na maior parte da obra, desde as primeiras linhas, com muitos dados nos quais as inevitáveis falhas de memória e a tendência para a autojustificação ou a observação intensamente subjetiva, próprias de todo o discurso memorialista, pautam claramente o texto. Mas se a opção é perfeitamente admissível numa autobiografia ou em escritos assumidamente memorialísticos (como aconteceu com Alvorada em Abril, publicado por Otelo logo em 1977), já não pode ser tomada como principal via de uma «biografia», que deve sempre cruzar informação e contextualizar os pequenos e os grandes episódios. Outra solução discutível relaciona-se com a total ausência de identificação das fontes dos fragmentos de caráter anedótico que povoam o livro: mesmo dispensando-se as notas de rodapé, como aconteceu no corpo do texto, a credibilidade sairia reforçada se se soubesse de onde vem esta ou aquela frase, este ou aquele episódio, muitas vezes de importância decisiva na narrativa. Pouco positivo é ainda o uso de um registo literário algo linear, simplista, claramente voltado para a um público menos exigente, que contraria a escrita habitualmente atraente – sem deixar de ser poética e ao mesmo tempo rigorosa – que Paulo Moura habitualmente pratica. Claro que o livro se lê bastante bem, incorporando dados curiosos, alguns de natureza íntima, mas é impossível a este crítico, que é também historiador, deixar de imaginar de que forma irão olhar Otelo e a Revolução de Abril os leitores que no futuro o tomem como fonte única ou pelo menos primordial. Como podem servir-se de uma hagiografia para compreenderem o trajeto e o tempo complexo desse homem que «fica de pé quando todos se dobram», que «se chega à frente quando os outros se encolhem»?

Paulo Moura, Otelo. O Revolucionário. Publicações Dom Quixote. 660 págs.Versão revista de nota saída na LER de Junho.

    Biografias, História, Memória.