Num dado momento do seu trajeto filosófico, Jacques Rancière (n. 1940) passou a dedicar-se aos discursos dos excluídos, daqueles que num dado momento da História se viram confinados ao silêncio, empurrados para as margens pelas vozes hegemónicas: os proletários, os pobres, as mulheres, as minorias. Este A Noite dos Proletários, originalmente publicado em 1981, integra-se nesse esforço, procurando encontrar no discurso «desclassificado» de um conjunto de operários franceses saint-simonianos, «letrados» autodidatas da primeira metade do século XIX, um olhar diferente do habitual a propósito de conceitos – como exploração, domínio, trabalho, fadiga, economia, libertação, associação ou saber – associados à afirmação, então em pleno curso, do capitalismo triunfante e da nova identidade do universo do trabalho.
Mas de que noite falava aqui Rancière? Tal como a dada altura ele mesmo questiona, a noite «das batalhas perdidas», da submissão pelo trabalho, ou, ao invés, aquela que apontava para «a aurora dos tempos novos»? Para o perceber é preciso seguir os momentos, perceber os detalhes, ver os sonhos, os devaneios que integra, na qualidade de documentos, este impressionante trabalho de história social do mundo operário, onde nos é revelado todo um processo de apreensão de uma necessidade de emancipação por parte de pessoas comuns que o capitalismo reduzia à condição de combustível de um gigantesco maquinismo. Por emancipação, o filósofo entendia aqui a capacidade dessas pessoas para superarem a sua condição de explorados e para «se pensarem capazes de viver num mundo sem exploração». A noite da qual fala corresponde, pois, a um tempo destinado a preparar a emancipação: enquanto a maioria dos trabalhadores seguia o ciclo infernal do dia a trabalhar e da noite a retemperar forças para trabalhar ainda mais, estes proletários leem, escrevem, debatem, arrancando ao descanso as bases de um «movimento operário íntimo», feito de vivências individuais que se reúnem a outras análogas produzindo uma nova dinâmica coletiva. Movimento que transcende as condições da própria vida operária e começa a ensaiar a possibilidade de uma regeneração da sociedade inteira, talvez da própria História.
Este é, pois, um livro intenso e apaixonante, através do qual se torna possível partir ao encontro de um tempo de escuridão e de servidão através do testemunho deixado por um conjunto de rostos que emergem do silêncio imposto. Do qual nasceria depois, no imaginário complexo saído da cultura e da luta operária gradualmente construídas por intermédio do estudo, da organização e do proselitismo, de «manhãs de domingo antecipadas» para poder «surpreender o nascer do dia», a configuração utópica, que a tantos mobilizou, de uma luminosa aurora capaz de trazer consigo o direito à felicidade. É também um encontro com a revolução cultural produtora daquele mundo, e daquela corrente da História, que o ano de 1989 colocou entre parêntesis.
Jacques Rancière, A Noite dos Proletários. Arquivos do Sonho Operário. Trad. de Luís Leitão. Antígona. 400 págs. Versão de uma nota de leitura publicada na LER de Julho-Agosto.