Les feuilles mortes


| Yves Montand em Parigi è sempre Parigi (1951), de Luciano Emmer

Elegia e Recordação da Canção Francesa
por Jaime Gil de Biedma

C’est une chanson
que nous ressemble.
J. Kosma e J. Prévert: Les feuilles mortes

Lembrai-vos: a Europa estava em ruínas.
Todo um mundo de imagens me resta desse tempo
descoloridas, a ferir-me os olhos
com os escombros dos bombardeamentos.
Em Espanha, a gente apertava-se nos cinemas
e não existia aquecimento.

Era a paz – depois de tanto sangue –
que chegava andrajosa, como a conhecemos
os espanhóis durante cinco anos.
E todo um continente empobrecido,
carcomido de história e de mercado negro,
de repente foi-nos mais familiar.

Gravuras da Europa do após-guerra
que parecem molhadas em chuva silenciosa,
pardas cidades onde chega um comboio
sujo de refugiados: quantas coisas
da nossa história próxima trouxestes, acordando
a esperança em Espanha, e o temor!

Até o ar desse tempo parecia
que estivera suspenso, como se perguntasse,
e nas velhas tabernas de bairro
os vencidos falavam em voz baixa…
Nós, os mais jovens, como sempre, esperávamos
alguma coisa definitiva e geral.

E foi nesse momento, exactamente
nesses momentos de medo e esperanças
– ai, tão irreais – que apareceste,
oh rosa da sordidez, manchada
criação dos homens, arisca, vil e bela
canção francesa da minha juventude!

Eras o não esperado que se impõe
à imaginação, porque é assim a vida,
tu que cantavas a heroicidade canalha,
o estalido das rebeldias
como se fossem labaredas, e o medo de dormir sozinho,
a intensidade que aflige o coração.

Quanto em seguida todos te quisemos!
No teu mundo de noites, com o rapaz e a rapariga
enlaçados, de pé num gonzo escuro,
na surdina das tuas melodias,
um eco de nós próprios ressoava, exaltando-nos
com a nostalgia da rebelião.

E ainda, alta noite, só,
com o copo na mão, pensando em minha vida,
outra vez sans faire du bruit tuas músicas
soam na memória, como uma despedida:
parece que foi ontem, e mudou alguma coisa.
Hoje não esperamos já a revolução.

Desconjuntada Europa do após-guerra
com a lua a espreitar através das janelas partidas,
Europa anterior ao milagre alemão,
imagem da minha vida, melancólica!
Nós, os desse tempo, já não somos os mesmos,
embora às vezes nos agrade uma canção.

(De Moralidades. Trad. de José Bento.)

    Olhares, Poesia.