Na noite de 12 para 13 de Agosto de 1961, precisamente às duas da manhã, começou em Berlim, sob a direção de Erich Honecker, secretário do Comité Central do Partido Socialista Unificado da Alemanha para os assuntos oficiais, a construção do muro destinado a separar as zonas de ocupação francesa, britânica e americana da área então controlada pelos russos. Para a União Soviética e as autoridades da República Democrática Alemã, responsáveis pela decisão, esta destinava-se a «defender» a sua forma peculiar de socialismo da «agressão capitalista». Na verdade, o primeiro objectivo foi pôr termo ao êxodo massivo da população da Alemanha Oriental, que representava uma enorme hemorragia demográfica e económica para o bloco de Leste e abalava a sua imagem internacional.
Para se perceber a dimensão do problema basta recordar que entre 1949 e 1961, e beneficiando do estatuto quadripartido da Berlim do pós-guerra, mais de três milhões de refugiados tinham passado já do território controlado pelos soviéticos para o lado ocidental, apesar das restrições desde logo colocadas aos reencontros com os familiares que tinham ficado. Os protestos do mundo democrático contra o «Muro da Vergonha» não impediriam a posterior ampliação e o aperfeiçoamento tecnológico e militar desta barreira severamente controlada em pleno coração de Berlim que simboliza o apogeu da Guerra Fria e apenas foi desmantelada em 1989. Rememorando a data da construção, transcreve-se o relato dramático da morte de Günter Litfin, a primeira provocada numa tentativa de saltar o muro rumo ao Ocidente e à liberdade.
Günter Litfin, de 24 anos de idade, era um qualificado alfaiate de uma loja de modas de Berlim Ocidental, perto da estação do Jardim Zoológico. Como vivia com os pais e irmãos no subúrbio de Weissensee, em Berlim Leste, vinha todos os dias para o Ocidente, sendo, por isso, um dos chamados «atravessadores da fronteira». O jovem Litfin era suspeito, não apenas por trabalhar em Berlim Ocidental, numa indústria «decadente», mas também devido à sua família politicamente duvidosa. O pai, talhante, tinha sido, no pós-guerra, membro da CDU de Berlim Leste. Em 1948, quando roubaram a independência a esse partido e os seus líderes foram forçados a fugir para o Ocidente, o pai Litfin recusou-se a aderir à casca vazia que era a CDU do «bloco», controlada pelos comunistas. Manteve-se leal ao partido independente, que sobrevivia na clandestinidade e realizava reuniões em Berlim Ocidental para os seus membros de leste, os quais, até 13 de Agosto de 1961, podiam atravessar a fronteira participar nelas.
Nesse Verão de 1961, Günter Litfin tinha planeado mudar-se para Berlim Ocidental. Tinha encontrado um apartamento não muito longe da loja de modas onde trabalhava. No sábado, 12 de Agosto, ele e o irmão, Jürgen, foram até lá de S-Bahn e passaram o dia todo a preparar a casa para Günter se mudar. Trabalharam até bastante tarde e apanharam o último S-Bahn de volta a casa, por volta da uma da manhã de domingo, 13 de Agosto. Deve ter sido um dos últimos comboios a atravessar para Berlim Leste, antes da linha ser fechada. Foi, por isso, perfeitamente compreensível a raiva e o desespero do jovem, ao saber do encerramento da fronteira. Tinha-se fartado de trabalhar e agora, no último momento, roubavam-lhe o futuro que tinha planeado. Tendo ficado imediatamente desempregado e podia também vir a ser vítima do estado da Alemanha de Leste. Passou os dias imediatamente a seguir ao 13 de Agosto a rondar as zonas da fronteira na sua bicicleta e a ver como as barreiras iam sendo reforçadas e prolongadas. Nalgumas partes, estavam a ser erguidos muros. Litfin decidiu tentar a sorte no que parecia ser um dos pontos mais fracos da nova fronteira: os canais. E, além disso, ele era um óptimo nadador.
Por volta das quatro da tarde de quinta-feira, 24 de Agosto de 1961, meteu pela Alexanderufer, uma estrada que seguia ao longo da margem do canal para navios que liga o porto norte de Berlim ao rio Spree. Havia também aí uma ponte por onde passava o S-Bahn entre Berlim Leste e Berlim Ocidental, através daquela fronteira desde há 11 dias altamente policiada. Aquela parte tinha uma largura bastante maior do que o resto do canal, com cerca de 140 metros, e formava uma bacia, conhecida como o «Porto de Humboldt» (Humboldthafen). A vantagem era que a margem oposta, a Listufer, se situava no sector britânico de Berlim Ocidental. Se Günter conseguisse chegar e subir à outra margem, estaria a salvo.
Continuou a andar ao longo da margem do canal, até chegar à ponte do caminho-de-ferro, por baixo e à volta da qual havia vários cais de amarração. Subitamente, ouviu uma voz gutural gritar: «Stehenbleiben!» (Alto!), e estacou imediatamente. Havia polícias dos transportes, trapos, em cima da ponte ferroviária, e tinham detectado Litfin. Mas ele não ia desistir agora. Correu para um dos cais e lançou-se à água do Porto de Humboldt. Mantendo-se sempre à direita da ponte, nadou vigorosamente em direcção ao Ocidente. Um dos trapos foi-o perseguindo ao longo da ponte, e disparou alguns tiros na sua direcção, mas ele já ia a uns 20 metros da margem leste e dirigia-se rapidamente para o seu objectivo. Então, um dos outros guardas engatilhou a pistola-metralhadora na posição de rajada e disparou uma saraivada de balas à volta do jovem fugitivo. Depois de ter dado azo àquela «rajada provocada» (como o relatório da Stasi lhe chamaria), Günter Litfin afundou-se na água. Enquanto nadava, uma bala tinha-lhe entrado pela nuca e saído pelo queixo. Tinha sido, segundo tudo fazia crer, um acto deliberado de atirar a matar.
Frederick Taylor, O Muro de Berlim, Ed. Tinta-da-China, 2007, pp. 316-7.