Era uma vez (na caserna)

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Quando cumpri os três meses de recruta do serviço militar, apesar de o fazer contrariado habituei-me rapidamente a quase tudo o que tinha a ver com a disciplina e o esforço físico. No entanto, sofria bastante com as noites de caserna. Posso descrever o cenário do horror: 200 mancebos numa espécie de hangar povoado de beliches em ferro e que produzia um eco danado, 50% a ressonar, 20% a escrever cartas às namoradas e 30% a jogar ruidosamente infinitas partidas de king ou de sueca. À luz de velas, obrigatoriamente, já que depois das 22 horas a iluminação era limitada às lâmpadas de presença. Quem, como eu, não tinha sono, não tinha luz para matar o vício da leitura e era hipersensível ao cheiro a estearina queimada, passava horas seguidas de inferno na Terra.

Numa noite, já farto de tanto padecer fritando os neurónios e a paciência em prol da Pátria, resolvi, acompanhado de outro parceiro de infortúnio, pregar uma partida aos camaradas barulhentos e tentar obter algum silêncio. Vestimos os dois roupa civil – completamente vedada aos recrutas, durante aqueles meses forçados a vestir sempre a farda regulamentar – e iniciámos um caminhada pelos corredores, com passo firme e berrando ordens como se fossemos oficiais. «Quero tudo calado!!!», «Vamos lá a meter silêncio nesta merda!!!», «Quem estiver a falar vai já lá p’ra fora encher!!!» Condicionados pelo ambiente disciplinar e o código hierárquico imposto durante aqueles meses de lavagem cerebral, e incapazes de nos reconhecerem por estarmos vestidos daquela forma inesperada, os outros recrutas calaram-se de imediato. Silêncio total, como num cemitério. E por uns tempos o ruído diminuiu muito, atenuando o nosso sofrimento.

Volto a esta experiência de condicionamento dos outros de cada vez que me chegam discursos sobre a impossibilidade de se pensar fora do quadro das coisas tal como elas se mostram na sua aparente imobilidade. De cada vez que passam por mim juízos oportunistas ou derrotistas, sobre a situação financeira do país e a ordem política tal e qual está, que partem do princípio de acordo com o qual «as coisas são como são» e não existe alternativa a um lógica repetitiva e sem surpresas. Sugerindo que não há como evitar a desgraça, devendo, quanto muito, procurar minorar-se os seus efeitos mais negativos. Assim reforçando o conformismo e o silêncio que alimentam a injustiça. Assim nos empurrando para o precipício, a marchar tristemente em ordem unida.

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