Não é novidade alguma dizer-se que estes tempos de desigualdade e crescente penúria, de ausência de perspetivas e de crise dramática do Estado social, são péssimos para a democracia. Nem é preciso ler os títulos ou ver os telejornais; basta andar de olhos abertos e de ouvidos alerta para percebermos como um número crescente de pessoas associa a crise ao desgoverno, o desgoverno à mentira e a mentira ao sistema político que tem a democracia representativa como núcleo. Neste ambiente, facilmente se propaga uma grosseira retórica antipartidos, antipolíticos e «antipolítica» que a todos mete no mesmo saco e não anuncia nada de positivo. Pior: esta é a altura para os discursos demagógicos se multiplicarem em número e em capacidade de influência, servindo-se dos sintomas mais dolorosos para enganarem os cidadãos a respeito dos motivos que os produziram e dos métodos da cura. A democracia, asseguram, é um desperdício, não dá de comer às pessoas, pelo que é necessário suspendê-la para se evitar a catástrofe. Se tal acontecer, serão cortadas as pontes com o passado recente e um autoritarismo mais ou menos iluminado, e sem fim à vista, será apresentado como única via possível para escapar ao descalabro. Tivemos em Portugal um bom exemplo deste caminho sem retorno, com a imagem negra e falsificada da história da Primeira República que o Estado Novo divulgou ao longo de décadas, insinuando a ideia de que o regresso do sistema parlamentar seria uma concessão a um caos primitivo e infernal.
Mas a descrença na democracia que a crise transporta consigo chega também ao interior das forças que se batem por ela. Na medida em que as necessidades mais primárias se tornam urgências, a luta por uma participação democrática alargada, pela liberdade de expressão, pela defesa dos direitos individuais, pela transparência nos processo de decisão e pela equidade mas questões de política internacional, deixa de ser uma bandeira e passa para segundo plano. Vemos então setores que no passado estiveram associados a regimes tirânicos, a formas tenebrosas e implacáveis de pensamento único, a purgas e genocídios sem nome e sem número perpetrados por necessidade «do povo e do socialismo», e que pretendem continuar a intervir como suposta vanguarda, a serem ingenuamente tratados como se a génese maligna que não renegaram se tivesse dissipado num passe de mágica ou de repente se tivesse tornado desculpável e inofensiva. É certo que estes setores são complexos e incorporam muitas pessoas, talvez mesmo a maioria delas, honestas e capazes de dialogarem com a opinião dos outros. Além disso, neste contexto de crise, são aliados indispensáveis num processo que imponha a derrota da lei da selva do capitalismo neoliberal. Mas não devem ser aceites sem vigilância, não podendo calar-se, em nome de uma unidade combativa que pode rapidamente apodrecer, as atitudes e as posições antidemocráticas que possam proclamar ou pôr em ação. Uma vez mais, a este respeito a História é simultaneamente testemunha e boa conselheira. Ignorá-la ou varrê-la para debaixo do tapete pode ser muito perigoso.