Durante um quarto de século, o passado das centenas de milhares de portugueses chegados ao Portugal europeu com a descolonização pareceu ter sido apagado. A integração foi dramática, difícil e em larga medida incompleta, mas se o seu futuro continuou a preocupar, o que ficara para trás parecia «merecer» o completo apagamento. Foi só quando a normalização possível da situação dos «retornados» deixou de ser um problema coletivo que estes adquiriram uma nova visibilidade. Esta foi conquistada recentemente e de um modo muito lento, apenas projetada no interesse público, aliás, numa fase bem posterior à abordagem da própria Guerra Colonial, também ela silenciada e só a partir da década de 1990 em condições de começar a ser objeto de um grande número de leituras de natureza crítica, jornalística, histórica, política ou ficcional. Neste caso, afora a publicação de alguns romances (como o recente O Retorno, de Dulce Maria Cardoso) e de textos de natureza memorialística e nostálgica, poucos livros abordaram o tema do regresso de uma forma equilibrada, sem com isso querer dizer desvinculada da emoção invocada pela memória e da mágoa imposta pelo silêncio. Mas é isto que procura e consegue Voltar, da autoria da jornalista Sarah Adamopoulos.
Afinal quem foram, ou quem são, os «retornados»? Grosso modo, aqueles que, por diversos motivos, mas principalmente por a dada altura sentirem a sua segurança pessoal ameaçada, abandonaram de malas e bagagem os territórios coloniais para refazer a sua vida na «Metrópole». A jornalista, que baseia o seu trabalho num importante esforço de pesquisa documental associado à recolha de entrevistas feitas a diferentes protagonistas deste drama, distribui-os por três tipos de alguma forma autónomos na origem e na vivência subjetiva do regresso, dedicando a cada um deles um capítulo inteiro: os que nunca tinham estado em Portugal antes do 25 de Abril de 1974 (e que por isso, na verdade, não «retornaram», mas «vieram»), aqueles que um dia haviam partido para recomeçarem em África o seu percurso pessoal (e se viram forçados por circunstâncias dramáticas experimentadas ou previsíveis, eles sim, a «retornar»), e aqueles outros, de uma geração mais recente, que devido à sua idade chegaram ao país com uma experiência africana ainda limitada, fazendo em larga medida o seu processo de socialização num lugar novo e híbrido, pontuado pelo preconceito dos portugueses europeus e pela nostalgia dos «africanistas».
No curto mas muito elucidativo prefácio ao livro, expressivamente chamado «A África em nós», Diana Andringa fala da condição dessas pessoas tocando num dos aspetos mais importantes da sua experiência individual e partilhada. Na realidade, como diz, elas haviam perdido «mais, muito mais, do que bem-estar económico, mordomias, bens materiais», que, sabemos hoje com maior detalhe, só uma minoria de facto detinha: haviam perdido principalmente uma parte de si mesmas, aquela que era «a sua identidade». Foi aliás esta perda, como este livro bem demonstra, que determinou a incapacidade para uma total adaptação e o invariável sentimento, estranho e doloroso, de pertencer a um outro lugar, de ter um dia vivido uma outra vida, num outro tempo, gravados na matriz mais pessoal mas de todo irrecuperáveis. Se fosse necessário condensar este importante livro numa única palavra, escolheria entender. O que a autora faz, num trabalho de «grande jornalismo» que se serve de uma escrita aliciante para aumentar o interesse do leitor e que pode ver-se como bastante próximo da investigação histórica, é procurar promover, unindo as pontas soltas das experiências de pessoas que passaram sobretudo pelos territórios de Angola e de Moçambique, a compreensão dos percursos que fizeram, ou lhes foram impostos, lá e cá. É entender esse quase indizível e sem dúvida amargo sentimento de «perda de passado», que tantos anos depois aflige ainda a larga maioria delas.
Sarah Adamopoulos, Voltar. Memórias do colonialismo e da descolonização. Prefácio de Diana Andringa. Planeta. 320 págs. Versão revista e alargada de um texto publicado na LER de Outubro.