A caridade é, para os católicos, uma das sete «virtudes teologais», estando associada ao amor pelo próximo e sendo encarada como marca da presença e da intervenção do Espírito Santo. Outras leituras dos Evangelhos dão-lhe um sentido um pouco diferente, relacionado uma vez mais com uma determinação divina condicionada pela fé, mas cujo cumprimento confere a quem a pratica uma espécie de segurança e de salvaguarda para a obtenção de um lugar eterno no definitivo «reino dos justos». Durante muito tempo, a sua prática foi, em sociedades fundadas na desigualdade dos direitos e em hierarquias bastante rígidas, transformada numa forma de pacificação social, dando a alguns dos mais pobres a possibilidade de obterem temporariamente o pão e o teto que lhes permitisse sobreviverem, e aos mais ricos a certeza de que, por essa forma, permaneceria contida a vontade deles se insurgirem contra a ordem que determinava a sua condição. No século XVII, Descartes viu-o bem quando declarou que essa suposta virtude «cobre com um véu os defeitos dos homens», e menos de cem anos depois Marivaux reforçou a ideia, sublinhando que ela «não tem pudor face a um miserável», uma vez que, «antes de o ajudar, começa por lhe espezinhar o amor-próprio» ao reconhecer como natural, como inevitável, a sua miséria.
A ideia da caridade como gesto altruísta esteve pois viciada desde o início, porque se baseava na desigualdade distributiva, sendo apanágio dos ricos em relação aos pobres ou dos pobres em relação àqueles, mais pobres ainda do que eles, que se arrastavam no lugar menos protegido da ordem social. O surgimento e o desenvolvimento do Estado-Providência veio alterar esta relação, uma vez que este assentou numa ideia mínima (ou maximizada, de acordo com os modelos) de justiça social, que fez da entreajuda não uma dádiva mas uma prática normalizada dependente de deveres contraídos e de direitos conquistados. A caridade, ou a «caridadezinha» como lhe chamava uma canção de José Barata Moura gravada em 1973, foi assim perdendo o seu lugar central como instrumento de pacificação das contradições sociais, sendo confinada apenas a casos extremos. Por isso, a situação que voltamos a viver em Portugal constitui um enorme salto atrás nesse trajeto: a substituição do apoio à vida quotidiana e à reinserção social dos mais necessitados, por troca com o fornecimento de «pratos de sopa grátis» ou com alguns pequenos direitos obtidos, a título de benévola dádiva, por quem pessoalmente exponha a sua condição de pobre e por isso solicite ajuda, é um colossal retrocesso civilizacional. Para os defensores do estado liberal em versão primitiva que agora nos governam, e para umas quantas pessoas que partilham do seu ideal de inevitável desigualdade, tal prática parece corresponder a uma atitude «natural». Destinada, sob a velha máscara da sorridente «bondade», a amortecer os piores conflitos e oferecer «aos que dão» uma dose de paz de espírito e um sono lindo, sem pesadelos.