Começo por uma declaração de intenções necessária num cenário de ódio e cegueira que tolda a perceção do real imediato: sou absolutamente contra a resolução do interminável conflito israelo-palestiniano pela força das armas. Sou também a favor da devolução aos palestinianos da possibilidade de construírem um Estado independente e de cessarem décadas de exílio e sofrimento dentro do seu próprio território. E defendo a existência de um Estado de Israel, não admitindo, ao contrário do que pregam os antissemitas assumidos ou dissimulados, a demonização dos judeus e o seu regresso à condição de párias e errantes. No essencial, tal como muitos palestinianos, tal como muitos israelitas, tal como muitos cidadãos de todas as partes que prezam o respeito pela liberdade e pelos direitos humanos, e pensam que o horror não deve ser combatido com o horror, defendo sem hesitações uma paz assente no reconhecimento mútuo à existência digna de que cada um dos povos, dentro dos seus Estados, soberanos, livres, autónomos e democráticos. E se possível, um dia chegaremos lá, também fraternos e colaborantes.
Mas sou igualmente contra a cegueira que só vê os mortos que importam e o lado dos conflitos que dá razão às convicções parciais. Segundo as autoridades em Gaza, nestes dias de operação israelita morreram 38 palestinianos, «metade civis, incluindo oito crianças e uma mulher grávida». Nem que fosse uma só pessoa, seria sempre de lamentar e condenar. Mas não foram as «centenas» ou os «milhares» que invoca a propaganda do Hamas – que até defende formalmente o uso de civis como escudos humanos, chamando-lhes «mártires», e foi quem iniciou a escalada de agressão bombardeando cidades israelitas (cidades, não colonatos) – e que muitas pessoas no ocidente, de novo na linha de um antissemitismo atávico, tomam por «verdade». Pior: esta indignação é acompanhada do silêncio total sobre o que, um pouco mais a norte, está neste momento a acontecer na Síria, com cidades a serem bombardeadas pela aviação de Assad e muitos milhares de mortos confirmados, sugerindo que existem mortos «de primeira» e, provavelmente, outros que serão «de quarta» ou «de quinta» categoria. Neste caso, defendendo na prática que aqueles causados por uma hipotética intervenção internacional sobre alvos militares – não desejável, sublinho, embora o seja a presença de uma força mediadora de paz – seriam sempre muito mais de lamentar do que os outros que estão, na realidade, a ser executados nas suas próprias casas por se terem levantado contra a tirania. Mesmo sabendo-se que a oposição síria é complexa e nem sempre democraticamente fiável, passando-se o mesmo, se virmos com cuidado, com algumas fações palestinianas.
Não, não pode conceber-se um cenário de paz e de equilíbrio na região fundado na parcialidade das análises, na deturpação do factos e na impossibilidade de aceitar que o ódio e, se quisermos, a maldade, se encontram em ambos os lados. Como bem sabe quem se informe sem complexos, quem conheça a História e, já agora, quem se aperceba dos mecanismos «naturais» do comportamento humano e da propaganda em teatro de guerra. Mas quem desta verdade tenha uma noção deveria agir em conformidade, e não alimentar a cegueira e o ódio, culpando apenas uns e desculpabilizando ou esquecendo os outros. A não ser que, sob palavras mansas, verdadeiramente participe desses sentimentos penosos e detestáveis. Morte é morte e guerra é guerra, não existindo uma que valha mais ou menos do que a outra. A paz, essa é um direito de todos.
Uma adenda em forma de pergunta aos ingénuos: serão os rockets do Hamas sobre Jerusalém mais certeiros do que os bombardeamentos da aviação israelita a partir dos céus de Gaza (que entretanto continuaram, aumentando o número de vítimas confirmadas referido neste texto)?