Em novembro de 1972 li pela primeira vez Mario Vargas Llosa. Sei precisá-lo porque na altura tinha o hábito infalível de escrever a lápis o lugar e a data de compra de cada livro e é essa a data que se conserva no meu exemplar d’A Conversa na Catedral. O romance, contendo um jogo de vozes e de sombras no Peru do tempo da ditadura do general Manuel Odría, fora lançado em Lima apenas três anos antes. E digo apenas porque a distância temporal entre os livros publicados no estrangeiro e as edições portuguesas, quando as havia, era então, por via de regra, muito maior. Para mim, a data é importante também porque daí para a frente, com oscilações de gosto, li uma grande parte do que o escritor peruano foi produzindo: todos os seus dezoito romances, vários dos seus livros de ensaio, as crónicas semanais no El País sobre temas da atualidade, e até o discurso de aceitação do Nobel da Literatura, ganho em 2010. Nem sempre concordei (ou concordo) com as suas posições políticas, mas sempre o olhei como uma referência moral, um grande contador de histórias e um homem corajoso, capaz de enfrentar tanto alguns tiranos quanto a lógica redutora do politicamente correto. E não tenho problema algum em declarar que foi por causa dele, e do debate que levou ao fim da velha amizade com Gabriel Garcia Márquez, que me tornei menos benevolente para com algumas das posições públicas do autor de Cem Anos de Solidão.
Chegou no entanto a altura de discordar, e bastante, de Vargas Llosa. Em «Dinossauros em tempos difíceis», um texto lido em Frankfurt no anos de 1996, por altura da entrega do Prémio da Paz concedido pelos editores e livreiros alemães, que constitui o último ensaio do seu recente e pessimista A Civilização do Espetáculo (Quetzal), o escritor tece considerações pouco benévolas sobre a importância cultural do audiovisual. E reforçando a posição ai expressa em diversas entrevistas entretanto concedidas (uma delas surge no Ípsilon desta semana), tem insistido na definição de um universo dicotómico separando, de um lado, a televisão, o ecrã do computador, a Internet, e do outro, o livro, e o livro exclusivamente em papel, apresentado como último bastião de uma sensibilidade, de uma noção de cultura e de uma visão do mundo que estariam em vias de desaparecer. Os primeiros seriam, de certo modo, essencialmente veículos de entretenimento, produtores de ruído e dissuasores da atenção, por isso incompatíveis em regra com o que chama «o compromisso social do intelectual». O segundo seria um território sitiado, mas de resistência, que é preciso defender mesmo prevendo a derrota como certa.
Ora é nesta visão maniqueísta – desgraçadamente ainda partilhada por muitos escritores, educadores, e cidadãos temerosos de toda a mudança nos processos de comunicação – que reside a minha profunda discordância de Llosa. Não vou retomar a argumentação já bem conhecida sobre a mudança de paradigma comunicacional, até porque sou daqueles que vivem em simultâneo, tão empenhadamente quanto podem, nos dois universos apresentados por ele como incompatíveis. E também não me quero referir à diferença entre uma leitura rápida, superficial, e uma leitura profunda, silenciosa, produzindo sempre diferentes efeitos e perceções. Mas não posso deixar de sublinhar o caráter pernicioso desse tipo de juízo. Porque a transformação tecnológica do ato de ler é irreversível. Porque este modo de ver as coisas, expresso e divulgado por quem tem responsabilidades intelectuais, favorece a consideração do campo da imagem e do digital como «menor». Porque ele inibe o investimento na melhoria da qualidade e da criação nesta área, que é, ela sim, absolutamente urgente. Porque bichos dos livros em papel como nós, de facto uma espécie em vias de extinção, estamos a dar lugar a pessoas que comunicam e criam sobretudo de outras formas. Porque, sem descurar, pelo menos por enquanto, os instrumentos tradicionais, é preciso usar os novos meios para continuar a passar a mesma mensagem de conhecimento e humanidade.