Nos últimos anos tem vindo a crescer o volume de estudos e de testemunhos de caráter autobiográfico sobre os trajetos da «extrema-esquerda» em Portugal nos tempos que precederam ou se seguiram à Revolução dos Cravos. Esta tendência tem ajudado a superar dois equívocos que durante algum tempo integraram a «lenda» pública construída a propósito desse setor da oposição ao antigo regime. Um deles, talvez o mais conhecido, é o proposto de um modo quase sempre ligeiro e sensacionalista por alguma comunicação social, mais interessada em explorar os «pecadilhos» juvenis desta ou daquela figura pública cujo trajeto de vida passou por ali do que em compreender historicamente o seu compromisso. O outro, mais profundo, assenta na perspetiva divulgada pelos setores que os militantes dessa área consideravam então reformistas, ou «revisionistas», e que ainda hoje não convivem bem com o facto de, apesar da sua «doença infantil» (seguindo o diagnóstico de Lenine) ou do seu «radicalismo pequeno-burguês», as organizações «esquerdistas» terem crescido e protagonizado sob o marcelismo importantes lutas contra o regime e a Guerra Colonial. Desempenhando também, apesar de confinadas aos meios estudantis e intelectuais, e ainda a estreitas franjas da juventude operária, um manifesto papel de catalisador no teatro político do imediato pós-25 de Abril.
Era uma vez… a Revolução é um volume autobiográfico da autoria do jornalista e colunista José Manuel Fernandes integrado naquela tendência para recuperar ou revisitar uma memória muito particular do antifascismo e do esquerdismo, e oferecendo ao leitor uma experiência que retoma alguns dos motivos já conhecidos de textos entretanto publicados. Mas acrescenta outros de uma natureza absolutamente original, cujo interesse ultrapassa em muito a mera experiência individual e justificam a atenção de quem se interesse por conhecer melhor estes temas. A emergência pessoal de uma consciência antifascista e de uma gradual aproximação em relação às posições da esquerda menos ortodoxa, nesta caso à leitura do «marxismo-leninismo-maoismo» proposto pelo PCP (M-L), é, aliás, narrada de uma forma atraente e que, malgrado uma ou outra imprecisão de natureza factual, abrirá ao leitor a perceção das razões, comuns a centenas de jovens portugueses da geração do autor, que os conduziram a entregarem-se por inteiro a esse universo de intenso idealismo e militância denodada, ajudando também a compreender um pouco melhor o padrão de luta política à qual se dedicavam.
O que torna este livro único é no entanto a abordagem de aspetos da história do maoismo em Portugal que estão ainda por tratar de forma desenvolvida pela nossa historiografia interessada no tema. Adiantam-se cinco, de um conjunto mais vasto. O primeiro tem a ver com a dimensão e o papel, na resistência ao regime na sua fase final, do movimento associativo dos liceus, em regra menosprezado ou mesmo esquecido face ao maior impacto da agitação universitária. O segundo respeita ao modo como nesta área se preparava e vivia o trabalho clandestino, com a particularidade dessa prática se ter conservado largos meses depois de Abril, já em plena «liberdade burguesa». O terceiro articula-se com o desenvolvimento complexo, e marcante para um conjunto elevado de militantes, da história interna do chamado Partido Comunista Português (Reconstruído), resultante já depois de Abril da fusão de diversas organizações M-L. Os outros dois dizem respeito à formação ética e política dos militantes: ao modo como se definia um quadro de vivências que passava até pelo controlo da moral sexual, bem como à preservação, em nome da pureza ideológica, de fórmulas orgânicas e processos de funcionamento que seguiam inflexivelmente o modelo estalinista. O livro encerra com a breve enunciação do processo de rutura de J. M. Fernandes com esse universo – uma rutura que o levaria a mudar depressa de barricada política e até de visão do mundo – mas essa é uma outra história, capaz, provavelmente, de interessar já a um outro padrão de público leitor.
José Manuel Fernandes, Era uma vez… a Revolução. Alêtheia Editores. 340 págs.Versão revista de um texto publicado na LER de Janeiro de 2013.