O coreano Yang Kyoungjong saiu do esquecimento durante o trabalho de arquivo. Tratava-se de um pobre homem de origem rural, recrutado à força sucessivamente pelo Exército Imperial Japonês, pelo Exército Vermelho e pela Wehrmacht, que foi feito prisioneiro pelos americanos na Normandia em junho de 1944. O seu trágico destino, com toda a probabilidade partilhado com muitos outros, funciona como um bom indicador da primeira intenção de Antony Beevor ao propor-se escrever aquela que poderia ter sido apenas mais uma entre centenas de sínteses sobre o conflito que identificou como «o maior desastre da História produzido pelo próprio homem». Neste A Segunda Guerra Mundial, editado já em 2012, Beevor procurou de facto ultrapassar os relatos que a espartilham com base numa separação rigorosa dos diferentes espaços envolvidos – a Europa a leste dos Pirinéus, o norte de África até à Abissínia, a imensa região do Pacífico, o Extremo-Oriente –, contornando o ponto de vista eurocêntrico e estabelecendo uma linha de continuidade entre as campanhas ocorridas nos múltiplos teatros de operações. Aliás, não é por casualidade que, como numa viagem de circum-navegação, o relato começa em agosto de 1939, com a vitória dos soviéticos sobre os japoneses em Khalkin-Gol, entre a Mongólia e a Manchúria, e encerra seis anos mais tarde, em agosto de 1945, precisamente na mesma região, com a invasão do norte da China pelo Exército Vermelho.
Autor de obras empolgantes e estudos de referência como A Guerra Civil de Espanha (1982), Paris após a Libertação (1994), Estalinegrado (1998), A Queda de Berlim (2002) ou Dia D. A Batalha da Normandia (2009), Antony Beevor participa da escola britânica de história militar que se tem destacado ao longo do último meio século. Ela integra – e o historiador assume de forma brilhante todas essas características – o prazer da narrativa, o gosto pelo pormenor, uma abordagem exaustiva das fontes, um conhecimento aturado dos meios e das táticas militares, uma vontade de «fazer reviver» a dureza dos combates, que a têm tornado, ao mesmo tempo, um modelo de rigor e uma experiência que não exclui o diálogo com um grande público não especializado, mas culto e com verdadeiro gosto pela leitura. Ao que não é estranho o facto de em recente entrevista concedida ao Figaro Beevor ter declarado, com muito a-propósito, que a história, não sendo invenção, «é um ramo da literatura, não das ciências».
Ao mesmo tempo, esta livro, assente numa investigação minuciosa que integrou o encontro com novas fontes, oferece ao leitor um conjunto de revelações e uma revisão da leitura do comportamento de alguns dos principais atores do conflito. Mostra pela primeira vez, por exemplo, o modo como os soldados japoneses praticavam sistematicamente o canibalismo, tratando os prisioneiros de guerra e os povos submetidos como gado destinado ao abate. Ou então descreve a forma como, para garantir a vitória em Estalinegrado, Estaline foi capaz de sacrificar mais de duzentos mil homens numa manobra de diversão. Por outro lado, tanto Bernard Montgomery como Erwin Rommel, os dois adversários habitualmente apresentados como exímios chefes militares, idolatrados pelos seus subordinados, são descritos sob uma perspetiva mais completa, revelando-se a forma como em muitos momentos hesitaram, revelaram medo ou se excederam em manifestações de mera vaidade pessoal. Já a capacidade militar e política de Chiang Kai-shek, apresentado tantas vezes como corrupto e incapaz, surge aqui claramente recuperada. Aliás, resulta claro também deste livro, ao mesmo tempo informativo e cheio de surpresas, o modo como, à exceção de Churchill, a generalidade dos políticos adversários de Hitler, a começar por Estaline, se deixaram durante muito tempo enredar nos ardis e promessas do Führer, permitindo que a Alemanha se rearmasse na errada presunção de que, mesmo após a invasão da Polónia e a declaração de guerra da Grã-Bretanha, uma posição de paz acabaria por prevalecer. Quando chegamos ao final da leitura – necessariamente demorada, tantos são os pormenores e as surpresas – a nossa perceção do que foi o maior conflito militar de todos os tempos fica inevitavelmente mudada.
Antony Beevor, A Segunda Guerra Mundial. Trad. de Fernanda Oliveira. Bertrand Editora. 1096 págs. Versão revista de artigo publicado na LER de Janeiro de 2013.