Ao lado dos campos de batalha das duas Guerras Mundiais e das campanhas de extermínio levadas a cabo pelos grandes regimes totalitários, as principais mortandades do século passado já não foram determinadas por epidemias, como acontecera recorrentemente em tempos mais recuados, mas antes pela fome. O mais doloroso e inaceitável é que elas ocorreram como consequência de uma política consciente e deliberada de governos que teriam, supostamente, a obrigação de prevenir, ou no mínimo de reduzir, o seu impacto. Estima-se que o Holodomor, a fome de caráter genocidário, hoje já bem conhecida nas circunstâncias e nos números, que devastou a Ucrânia em 1932-1933, enquanto em Moscovo se proclamavam as «vitórias», quase todas fictícias, do 1º Plano Quinquenal, de acordo com as estimativas menos pessimistas terá feito entre 5 e 6 milhões de vítimas. Nada de comparável, porém, à Grande Fome, que na China sobreveio entre 1958 e 1962, durante a qual o número de pessoas mortas devido aos seus efeitos terá muito provavelmente rondado os 45 milhões.
Consequência da política de desenvolvimento desequilibrado imposta pelo governo de Mao durante o «Grande Salto em Frente», supostamente destinada a alcançar e mesmo a ultrapassar o ocidente capitalista «em menos de 15 anos», deu lugar a deslocações em massa, à imposição do trabalho forçado e a um esvaziamento de áreas cruciais da produção agrícola, das quais resultaria um sofrimento escusado, e sem remissão, que durante décadas deixaria pesadas marcas na vida de um sem número de pessoas, famílias e comunidades. Em A Grande Fome de Mao, da autoria do historiador holandês Frank Dikötter, da Universidade de Hong-Kong, descreve-se essa era dramática e pesadamente traumática da história recente chinesa, para tal recorrendo aos arquivos do Estado, entretanto disponibilizados, e ao testemunho direto de um grande número de sobreviventes. Dikötter faz, aliás, parte de um grupo, que tem vindo a aumentar, de historiadores que começaram a rever profundamente a história oficial da China, do Partido Comunista Chinês e de Mao Tsé-Tung. Uma história durante décadas imposta, tanto internamente quanto no plano mundial, pela máquina de propaganda centrada em Pequim e pela cumplicidade, por vezes acrítica, de muitos ocidentais fascinados pelo «exemplo chinês». No tempo de Mao e depois deste.
Frank Dikötter, A Grande Fome de Mao. Trad. de Isabel Veríssimo. D. Quixote. 556 págs. Versão revista de um artigo publicado na LER de Fevereiro de 2013.