Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições.
Tomando como ponto de partida um esforço demorado e exaustivo de pesquisa documental e de recolha de perto de centena e meia de testemunhos pessoais, a começar por aquele, naturalmente mais profundo e demorado, que foi concedido pelo próprio biografado, José Pedro Castanheira escreve um livro que vai muito para além da reconstituição de uma vida dedicada quase por inteiro à política e ao país. Oferece assim um notável panorama dos episódios, movimentos, personalidades, momentos de escolha e decisões críticas que marcaram uma época da história portuguesa ainda carente de trabalhos detalhados, isentos e sistemáticos de interpretação histórica. Ao fim de poucas horas de leitura torna-se evidente que ele deverá forçosamente acompanhar quem, por necessidade profissional ou interesse pessoal, se disponha a conhecer mais do que aquilo que nos contam os estudos, as memórias ou as reportagens confinados a episódios e a fenómenos avulsos do nosso passado recente. Porque a partir daqui é possível observar, de forma ampliada, um universo móvel, complexo e dinâmico que observado à distância de décadas poderia erradamente ser olhado, como por vezes tem acontecido, como demasiado simples e unívoco. Aliás, a primeira das impressões duradouras que os leitores reterão da obra será com toda a certeza a de que o combate entre o antigo regime e a oposição, em primeiro lugar, e entre as correntes que à esquerda e à direita depois do 25 de Abril disputaram o poder, foi muito mais complexo e marcado pela diversidade das convicções e dos programas do que aquilo que pode hoje transparecer nas sinopses jornalísticas, em evocações que tendem a simplificar o passado ou na memória daqueles – a maioria de nós – que os viveram mais enquanto espetadores do que como protagonistas.
Após a sempre útil e indispensável incursão biográfica sobre os antecedentes familiares e as experiências da infância e da adolescência, este primeiro volume passa a acompanhar a vida pública de Jorge Sampaio ao longo de três etapas: a primeira, que começa em 1956 e vai até 1974, corresponde ao seu despertar para a política enquanto ativista e depois dirigente estudantil e segue-o depois tanto no lançamento da carreira como advogado brilhante, parte da qual em defesa de militantes antifascistas nos tribunais do regime, quanto na sua gradual emergência como personalidade destacada da oposição; a segunda etapa, que percorre essencialmente o período revolucionário pós-Abril e é encerrada em 1978, reporta a vivência intensa desse tempo de rápida transformação, mobilização e mudança da sociedade portuguesa e das instituições do Estado, lembrando a militância crítica de Sampaio no interior do Movimento de Esquerda Socialista e a rutura política e orgânica com este, sob a mácula crítica de «social-democrata de esquerda», bem como a experiência da intervenção política mais independente; por último, a terceira etapa da qual se ocupa ainda este volume, percorrida entre aquele ano e o de 1989, segue a sua intervenção como militante omnipresente, parlamentar destacado e depois dirigente máximo do Partido Socialista, fechando com a candidatura à Câmara de Lisboa. Para o segundo volume está previsto o tratamento do período seguinte, integrando a experiência de Jorge Sampaio como Presidente da Câmara da capital e os seus dois mandatos na Presidência da República.
A leitura vai-nos confrontando com alguma informação que, não sendo necessariamente surpreendente, nos permite observar de outra forma os combates políticos travados em Portugal ao longo das últimas décadas, em particular aqueles que tiveram lugar nos territórios que o biografado foi mais diretamente cruzando. Torna-se assim percetível, desde logo, o facto do conceito de socialismo, na aceção republicana, laica e democrática que sempre partilhou, se encontrar então entre nós num processo de permanente criação, experimentação e revisão, sempre associada a combates políticos que visavam esclarecer a sua definição teórica e principalmente os processos de mobilização da cidadania e os programas de governação aos quais deveria dar lugar. Um outro aspeto notório tem a ver com o facto de parte importante da atividade política reportada se desenvolver em larga medida vinculada a um conjunto de afinidades e de solidariedades pessoais, muitas vezes sob a forma de grupo restrito e fechado, que, regularmente, debatiam, preparavam ou combatiam mesmo as decisões tomadas nos organismos partidários e nas instituições democráticas mais formais. É também importante verificar, em articulação com este aspeto, como, no campo político no qual Jorge Sampaio se foi movendo, a iniciativa individual e a personalidade dos intervenientes se foram frequentes vezes impondo aos coletivos, definindo importantes orientações e viragens. Tal não deve, todavia, ser visto como um traço necessariamente negativo. Pelo contrário, a narrativa política que podemos acompanhar demonstra o importante papel ocupado no jogo democrático pela convicção pessoal e pelo carisma, tantas vezes em claro défice em personagens destacados nos tempos mais recentes da vida pública, nos quais a intervenção «aparelhística», burocrática, previsível, desvitalizada de coragem política, se tem mostrado dominante.
São, naturalmente, muitos os momentos da história portuguesa recente para os quais o interesse dos leitores é convocado, mas alguns deles merecem particular destaque, dada a forma como integraram importantes processos de mudança da vida pública naciomal. A campanha presidencial de Humberto Delgado, a crise académica de 1962, as campanhas da CDE em 1969 e 1973, a criação do MES, o 25 de Abril, o processo revolucionário (um tempo «absolutamente delirante», na voz de Sampaio), a adesão ao Partido Socialista, a primeira campanha presidencial de Mário Soares, as transformações internas que o PS viveu após a saída deste da sua direção, entre outros, são instantes abordados, frequentes vezes contados na primeira pessoa, que aqui ressurgem acrescentando informação ao que é já conhecido. Justificando uma atenção particular encontram-se de igual forma algumas experiências menos sonoras mas que, justamente por isso, vale a pena acompanhar. É importante, por exemplo, reconhecer alguns sinais da forma como, ainda em pleno Estado Novo, a oposição intelectual não comunista lidava com a inegável hegemonia do PCP no interior das hostes anti-regime. As páginas sobre a polémica entre as revistas O Tempo e o Modo e Seara Nova são ilustrativas desse combate fraturante hoje quase esquecido. Notável também, ainda que já um pouco melhor conhecida, a perceção da complexidade política e orgânica da resistência estudantil no início da década de 1960. De igual modo muito úteis são as páginas nas quais se refere a experiência do MES, a organização partidária de inspiração marxista à esquerda do PS, dentro do qual se travaram importantes combates políticos e de onde veio parte significativa dos quadros e dirigentes socialistas a partir da década de 1980. Bastante eloquente ainda é a descrição dos debates e lutas internas entre socialistas, «constantes picardias caseiras», confirmando aquilo que jamais foi estatutariamente estabelecido mas que por estas páginas parece inegável: a existência de tendências que não são, ou não foram, como se tem feito crer, simples «sensibilidades».
O interesse e valia deste volume não exclui, no entanto, a pertinência de alguns fortes reparos, centrados em aspetos que, a serem resolvidos de outra forma, tornariam a leitura ainda mais fluida e útil. Nota-se, desde logo, um número excessivo de páginas, e por isso de detalhes, nem sempre de todo necessários e em alguns momentos repetidos até, que tendem, por vezes, a cansar um pouco o leitor, o que prejudica um texto fundamentalmente vocacionado para o relato de uma história. Por outro lado, a voz do próprio biografado surge sempre excessivamente presente e interventiva, mesmo nos momentos em que é apresentada como esclarecedora. O autor tem o cuidado de mencionar no prefácio a forma como Sampaio terá procurado delicadamente eximir-se de interferir no resultado final da obra, dele tendo tomado conhecimento praticamente sem se pronunciar, mas o facto de esta ser escrita com essa observação como pressuposto parece ter acabado por condicionar o registo global, em determinados momentos de algum modo mais próximo da autobiografia do que da biografia e sem integrar uma reflexão crítica – associada a testemunhos menos benévolos e não tão elogiosos, que por certo existiriam – capaz de identificar os erros e as limitações, tão inevitáveis quanto naturais, tanto do homem quanto do político. Para além de por vezes ser dado um destaque ao testemunho oral sem, aparentemente, se considerar de forma expressa os problemas que este integra, na sua relação com a fidelidade da memória, enquanto fator de prova. Por fim, ficaram em regra por identificar as influências políticas (encontra-se uma referência ao PSU de Michel Rocard, e pouco mais), as afinidades intelectuais, as leituras decisivas, a definição das dúvidas e das certezas, as experiências de ilusão e de desilusão, as dimensões de esperança que com toda a certeza nortearam a vida de Jorge Sampaio e poderíamos ter ficado a conhecer um pouco melhor. Do conjunto sobressai, afinal, a imagem de um político persistente mas essencialmente pragmático, dedicado com paixão à coisa pública e à democracia, afirmando-se como voz essencial do último meio século da vida do país. Mas tal ângulo de observação poderá não bastar para o impor como uma influência forte e incontornável junto daqueles que, enquanto cidadãos, acompanharam o seu trajeto, ou dos que dele só agora, através destas páginas, começam a tomar conhecimento.
Insista-se no entanto: este trabalho de José Pedro Castanheira manter-se-á durante bastante tempo como um documento essencial, de interesse público e de uma grande utilidade, não apenas para se conhecer melhor uma figura central do nosso percurso democrático, mas igualmente para se compreender a vida portuguesa recente e reencontrar, imersos no tempo no qual tiveram lugar, muitos dos seus atores e dos seus episódios. Dos pequenos e dos grandes, pois de uns e de outros é feita a História.
José Pedro Castanheira, Jorge Sampaio. Uma biografia. Volume I. Porto Editora – Edições Nelson de Matos. 1064 págs. Versão revista de artigo publicado na LER de Fevereiro de 2013.