Não sei se existe alguma dissertação académica sobre o tema, mas é muito provável que sim, apesar dele requerer uma disposição psicológica especial. A «literatura de estado terminal», a escrita de leito de morte, é um género que se impõe por si mesmo, uma vez que os escritores, os críticos, os historiadores, os jornalistas, também morrem, e, por certo, a maioria daqueles que perto do fim estejam em condições físicas e com discernimento para o fazerem terá sempre a tentação, por vezes transformada em ato, de escrever, de escrever uma vez mais, talvez pela derradeira vez. Agora sobre essa experiência única pela qual está a passar, do convívio com o fim iminente da própria vida no limite da capacidade de se fazer ouvir. Walt Withman terá sido um dos que foi mais longe, ao completar em 1892, já muito perto da morte e totalmente dependente dos outros, a derradeira versão de Leaves of Grass, declarando-a como a única fidedigna e completa.
Muito recentemente pudemos seguir duas experiências de «literatura» terminal desta natureza, ambas associadas à morte de dois intelectuais públicos de reputação mundial, que resolveram escrever, no contexto da sua própria experiência terminal, sobre o seu passado, o seu presente e a sua ausência de futuro. O primeiro deles foi Tony Judt, que já com a morte à vista de forma irrevogável, e mesmo sem poder escrever, ainda ditou três livros, todos eles publicados entre nós pelas Edições 70: Pensar o Século XX, Um Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos (Ill Fares the Land) e O Chalet da Memória. No texto «Noite», incluído neste último, revelou mesmo de que forma a sua incapacidade para falar, para tomar notas e até para se mexer, lhe aguçou a memória e o espírito crítico, compelindo-o a «escrever» enquanto pudesse.
A segunda experiência foi a de Christopher Hitchens, de quem a Dom Quixote fez sair há pouco Mortalidade. Trata-se de um documento duro e comovente, um grande livro marcado por uma atitude bastante diferente da mostrada por Judt. Enquanto este procurou elidir a proximidade da morte numa caminhada, imaginada e consciente, entre a evocação do seu próprio passado, a revisão de temas que o haviam ocupado como historiador e uma tomada de posição assumidamente política sobre o seu próprio tempo – incluindo neste o tempo dos seus últimos dias e até o futuro –, Hitchens confrontou-se principalmente com a necessidade sentida de se pacificar com os próprios objetos de aversão. Fazendo-o, no entanto, sem que tal esforço, associado a um legítimo estado de revolta contra a sua condição de saúde, se traduzisse na renúncia de convicções antes repetidamente afirmadas. Bem pelo contrário.
Debate assim temas repetidamente considerados tabu por quem aborda os doentes em estado terminal: o momento de reconhecimento da doença; a forma como os outros convivem com a notícia e com o próprio doente; a evolução aos ziguezagues do conceito de esperança; o modo como sucessivas faculdades vão deixando de se mostrar; a estranha forma de vida no interior de uma unidade clínica especial, a Tumorlândia; a relação com a religião, particularmente a vivida por quem, como o autor, se conserva ateu e se vê forçado a recusar o «conforto» dos amigos e conhecidos que entendem ser aquele o momento da «conversão». A estes, num registo de humor que nunca larga o autor quase-morto, com nunca abandonou o autor fogosamente-vivo, Christopher Hitchens respondeu citando Voltaire, «que, ao ser importunado no seu leito de morte e incitado a renunciar ao demónio, murmurou que aquela não era a altura de fazer inimigos». Sai-se pacificado deste livro pois nele reconhecemos a capacidade humana de nem no último dos limites parar de cantar «o lado brilhante da vida».