Um dos fatores determinantes para a conservação da imagem pública positiva deixada por Santiago Carrillo (1915-2012), o antigo secretário-geral do PC espanhol, é-nos descrito com todos os detalhes por Javier Cercas na sua Anatomia de um Instante (Dom Quixote). Quando, em 23 de fevereiro de 1981, como parte de uma conjura militar contra os avanços da «transição democrática», um destacamento da Guardia Civil espanhola comandado pelo teatral tenente-coronel Tejero Molina ocupou pelas armas o Congresso dos Deputados, em Madrid, apenas três homens presentes no hemiciclo resistiram às ordens dos insurrectos para se deitarem no chão e permanecerem quietos: o primeiro foi o velho general Gutiérrez Mellado, o então ministro da Defesa, antigo militar franquista olhado pelos sublevados como um traidor, que resistiu com coragem e dignidade às ordens de Molina; o segundo foi Adolfo Suárez, primeiro-ministro em exercício, um ex-falangista com comportamento de señorito também convertido ao processo de democratização. E o terceiro foi Carrillo, como chefe dos comunistas o alvo natural dos militares golpistas, que assumiu uma atitude heroica ao resistir também às suas imposições, deixando-se ficar sentado e aparentemente imperturbável a fumar o seu cigarro. Uma atitude que lhe valeria depois o respeito de muitos adversários e contribuiria para ampliar o destaque que teve como figura central da estabilização, no pós-franquismo, da Espanha democrática. Como um simpático idoso, democrata de sete costados, que apenas uma minoria se atrevia a questionar.
Todavia, uma parte significativa desse capital de simpatia é posta agora em causa com a publicação de um livro algo polémico do historiador britânico Paul Preston, um profundo conhecedor da formação da Espanha contemporânea, responsável, entre outras obras, por uma biografia de Franco e uma história da Guerra Civil. Em El Zorro Rojo (Random House Mondadori), Preston revisita em cerca de quatro centenas de páginas a vida de Carrillo, desde a infância em Gijón à retirada formal da política, depois de em 1985 ter sido expulso do PCE, passando pela sua juventude como socialista, pela adesão ao ideal comunista nas vésperas da Guerra Civil, pela sua atividade dirigente como adepto da mais pura ortodoxia estalinista, e pela participação, já nos anos 70, na construção do «eurocomunismo» como tendência crítica da política soviética e de vinculação à democracia representativa. Esta revisitação é profundamente negativa para a interpretação da ação de Carrillo, visto sempre como um homem habitualmente impulsivo, imprudente, megalómano e autoritário, responsável até, dada a preocupação maior que manteve em conformar-se com a ortodoxia imposta pelo Kremlin em detrimento do combate contra a ditadura, pela exclusão da luta contra o franquismo de dezenas de milhares de dedicados militantes comunistas, por sua iniciativa afastados da militância partidária. A conclusão do historiador é brutal: «As falsidades, as meias-verdades e a traição demonstram, mais que a inteligência, o ímpeto e a ousadia, que a chave para Carrillo era a ambição.» É sempre perturbante revistar com atenção as biografias daqueles que alguns tomam por semideuses.