De vez em quando recupero dos arquivos deste blogue textos não desatualizados aos quais vale a pena sacudir o pó.
Seguro a bela edição da Antígona, já com mais de vinte anos, de Nós, concluído em 1921 por Ievgueni Zamiatine (1884-1937), e regresso ao último parágrafo, sublinhando a sua derradeira paisagem. De um entusiasmo tão simulado quanto assustador, que deveria prefigurar esse futuro industrial, radioso, perfeito e desapiedado da sociedade inventada cujo destino histórico, tão «real» quanto imperfeito, hoje podemos conhecer: «Conseguimos construir um muro temporário de ondas de alta voltagem na transversal da 40ª. Avenida. Tenho a esperança de que venceremos. Mais do que isso, tenho a certeza de que a vitória é nossa. Porque a racionalidade tem de triunfar.»
Muito antes do Admirável Mundo Novo, de Huxley, e de 1984, de Orwell, este romance foi o primeiro a conceber a distopia de uma sociedade futura absolutamente ultrarracional e transparente. Nela todas as cidades possuíam uma geometria regular, destinada a condicionar a vida vigiada, mas supostamente afortunada e igualitária porque «protegida», dos seus habitantes. Onde a diferença era intolerável e a imaginação, porque individual, tomada como prática suspeita, um grave crime sujeito a punição. O livro foi, muito naturalmente, proibido na União Soviética, onde só foi editado em 1988, já no tempo de Gorbachev. Bolchevique desde a primeira hora, Zamiatine, em rutura com o partido desde 1919, não se erguia ali contra a utopia comunista original, mas sim contra a sua degradação. Já então visível, ao contrário do que certas fábulas por vezes contam, durante a vida de Lenine e de Trotsky. Em 1931, pouco antes de conseguir exilar-se, Zamiatine afirmou numa carta na qual pedia autorização para o fazer que «a verdadeira literatura apenas existe quando é criada, não por diligentes e previsíveis funcionários, mas por loucos, eremitas, heréticos, sonhadores, rebeldes e céticos». Uma proclamação de liberdade para a mais extrema diferença que a uniformização totalitária, «racional», jamais poderia aceitar.