A partir deste sábado Lisboa passa a contar, junto da Quinta das Conchas, ao Lumiar, com uma Avenida Álvaro Cunhal. Têm-se multiplicado as palavras de aprovação ou de impugnação perante esta iniciativa, numa lógica de frágil debate e de forçada comparação que perde o sentido se observarmos a grande variedade das referências toponímicas a cidadãos que foram políticos e estiveram associados a diferentes convicções, o que é próprio de um país com história e que vive em democracia. Não atribuindo demasiada importância a este tipo de querela sobre o passado comum, concordo em absoluto com esta escolha aprovada formalmente pela Câmara lisboeta. A meu ver, ela justificaria até uma artéria ou uma praça mais central, na qual a designação e a memória do evocado se pudessem tornar mais visíveis e marcantes. Uma rua ou uma praça que percorressem regularmente muitos milhares de lisboetas e forasteiros, por onde pudesse passar a Volta a Portugal em Bicicleta, onde fosse possível marcar encontros amorosos e expressar em alta voz a vontade ou o protesto coletivo dos cidadãos.
Por motivos de trabalho, recentemente tenho reencontrado Álvaro Cunhal em alguns dos textos pelos quais foi responsável após a fuga da prisão de Peniche, em Janeiro de 1960, e até ao 25 de Abril. A sua leitura tem-me permitido reforçar a admiração que julgo ser devida, por parte da generalidade dos portugueses que amam o seu país e possuem memória, ao antigo secretário-geral do Partido Comunista Português. Não porque concorde com a maior parte do que nestes textos tenho encontrado. Pelo contrário, eles misturam um esforço notável pela redefinição da linha política do PCP na fase final do Estado Novo, tendo como objetivo a busca de uma via pacífica para a democracia como etapa para a afirmação da revolução socialista, com uma forte e a meu ver infeliz dose de incompreensão pelos caminhos que uma parte da esquerda estava então a tomar, fugindo aos esquemas que sobrepunham a análise de classes da dogmática leninista à rápida volatilidade, à instabilidade e às novas dinâmicas da sociedade portuguesa da época. Estes textos mostram, sem dúvida, um dos traços marcantes de Cunhal, que foi a sua rigidez teórica, naturalmente apresentada sempre como pura expressão «dialética» de uma linha justa que teria em conta as transformações do mundo ou, como ele tanto gostava de dizer, «da vida». Mas eles mostram muito mais, e um muito mais que é o mais importante
Revelam o esforço infatigável de um homem que, desde os dezasseis anos, e até a mente e o corpo lhe permitirem, colocou a existência, a inteligência e o múltiplo talento ao dispor de uma convicção inabalável, que identificava com o caminho da maioria do portugueses rumo a uma sociedade melhor, mais justa e mais igualitária. Nunca poderemos saber – apenas poderemos conjeturar – o que seria Cunhal se o seu partido tivesse tomado o controlo do Estado e, com os anos, ele se transformasse num Honecker, num Jivkov ou num Kadar. Provavelmente, dele teríamos uma imagem bem menos positiva. Ou não. Mas tal não importa agora. O que conhecemos foi um Álvaro Cunhal que trocou uma vida que poderia ter sido sossegada, passada em família, materialmente próspera e de público e consensual reconhecimento como artista e intelectual, pelos dias e as noites insalubres da militância contra a nossa versão do fascismo, contra o nosso imberbe mas voraz capitalismo e pelo seu ideal de socialismo. E essa escolha, sempre rara, difícil e corajosa, acompanhada que foi de uma prática política que julgou adequada a ela e que traçou com grande talento, não pode deixar de ser tomada em linha de conta na sua evocação. Na toponímia lisboeta como noutras partes e por todas as formas. Enquanto memória de uma figura exemplar – particularmente necessária neste tempo de políticos de convicções volúveis, curto fôlego e nula audácia – que esteve na primeira linha do que acreditou ser a luta imprescindível por um Portugal melhor. Figura e memória que devem ser recordadas como centrais no século vinte português. Até quando, no ruído da cidade, ouvirmos o intercomunicador bradar: «Chamam um táxi à Álvaro Cunhal!»