No princípio o 10 de Junho metia-me medo. A partir dos treze ou catorze passei a odiá-lo. Apesar da atitude ter mudado, o motivo era o mesmo: a experiência traumática de ver na televisão de canal único, a preto e branco, a cerimónia integral com a «veneranda figura do Chefe de Estado», de alva farda marítima, ou com os ministros do governo, invariavelmente de escuro cinza, a aporem medalhas de bronze – as de ouro e prata estavam reservadas para os mais dignos – em homens e mulheres trajados de negro, recém-chegados nos seus fatos domingueiros de aldeias recônditas ou de bairros degradados. Lá estavam eles nervosos e chorosos no Terreiro do Paço, com «as tropas dispostas em parada», a receber, ano após ano, em complemento de um cumprimento rápido e ritual, o pequeno símbolo metálico com o qual a Pátria, supostamente reconhecida, premiava os seus filhos mortos, os seus maridos desaparecidos, os seus irmãos que haviam perdido a razão, a alma ou os tímpanos numa guerra sem saída. Mesmo após a instauração da democracia, aqueles que haviam crescido a observar esse rito anual jamais esqueceram as manhãs de verão durante as quais, a cada ano, se transformava aquele feriado num funeral da pátria.
Quando, depois de Abril, o «Dia da Raça» passou a ser evocado como o «de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas», apesar das mudanças formais o tom solene e dramático jamais foi perdido, mantendo-se o cerimonial como um ritual pesado, vivido entre discursos soleníssimos, cerradas distribuições de comendas e a indiferença geral. Entretanto, por impossível que pudesse parecer, nos últimos anos tudo piorou: o feriado que os republicanos instituíram para relembrar a alegada data da morte de Camões, o cantor da eternidade da pátria, foi transformado, sob a tutela da desgostosa figura que agora a ele preside, no lúgubre sinal de uma nova perda da independência. «É negra a terra, é negra a noite, é negro o luar. / Na escuridão, ouvi! há sombras a falar», escrevia Guerra Junqueiro no poema Finis Patriae, composto em 1890, o ano do Ultimato Inglês, contra o qual, aliás, haviam os republicanos lançado como bandeira de luta a evocação pública da figura do poeta nacional. Só libertando-nos destas personagens sombrias poderemos ter esperança de, por fim, um dia poder viver este dia como o de uma festa verdadeiramente comunitária de um país livre e independente. Como um feriado bem passado. Sem medos e sem ódios.