O sociólogo Émile Durkheim falava da solidariedade como um elo moral capaz de unir os indivíduos do mesmo grupo e de funcionar como fator de coesão. Sem ela, as sociedades dissolver-se-iam e os humanos voltariam a viver em bandos, centrados na sobrevivência e numa interminável guerra de todos contra todos. Porém, ela não traduz apenas uma ética de governação que impõe a proteção dos mais fracos: integra um sentido mais completo, capaz de incluir um sentimento de proximidade, entreajuda e comunhão. Diariamente alimentado, este sentimento assegura aos diversos grupos uma lógica de autoproteção que os defende do exterior e lhes confere autonomia e protagonismo. Sob os regimes autoritários, esse dever de solidariedade foi frequentes vezes subvertido, trocado por uma escravizante diluição do indivíduo no todo. Por isso as democracias, que se desejam emancipatórias, o valorizam tanto.
Até há pouco, a solidariedade parecia corresponder a um irreversível sinal de desenvolvimento. Mas a mudança brutal dos códigos sociais a que temos assistido está a alterar rapidamente a afirmação desse sinal. Em Portugal, dois exemplos recentes anunciam esta viragem. Num deles, após o assassinato de um estudante que há anos colaborava com a organização da Queima das Fitas do Porto, foi decidido manter os festejos na própria noite do crime, ignorando-se a dor partilhada pela morte de um companheiro. No outro exemplo, a brutal agressão pela polícia turca, durante a recente rebelião em Istambul, ao jornalista Paulo Moura, do Público, foi omitida pela generalidade dos órgãos de comunicação. Episódios particularmente chocantes porque ocorridos com dois segmentos sociais, ou profissionais, que ao longo de décadas foram protagonistas de inúmeros combates solidários.
É difícil explicar como foi possível chegar aqui. A capacidade solidária aprende-se ao longo da vida – na escola, no serviço militar, no trabalho, mas também na intervenção política; e ainda através da apreensão de valores legados, geração após geração, como parte de um património moral e cultural – e se é esquecida desta forma é porque algum importante laço humano está a ser quebrado. O que impõe uma reflexão urgente a todos os que têm consciência deste processo. Em dois versos da canção «Ser solidário», José Mário Branco propunha-nos «fazer de cada perda uma raiz /e improvavelmente ser feliz». Neste tempo de enormes e perturbantes perdas, a esperança num tempo melhor ao qual podemos associar um ideal de felicidade passará sempre pela compreensão de que é necessário impor um recuo do individualismo. E um retorno a essa noção de pertença que só a valorização da solidariedade pode oferecer.
Publicado originalmente no Diário As Beiras.