Nos últimos vinte anos teve lugar em Portugal uma nítida ampliação do conhecimento histórico, tanto ao nível do volume, da qualidade e da diversidade temática dos trabalhos académicos, quanto nos domínios da atividade editorial, da repercussão pública de determinados temas e da produção jornalística a eles associada. No entanto, tal alargamento não tem sido acompanhado por uma reflexão sistemática e convenientemente aprofundada sobre os sentidos da história como saber e sobre a dimensão do historiador como agente produtor e reprodutor de cultura. Investiga-se e escreve-se mais, sem dúvida, mas não se pensa de forma sistemática aquilo que vai sendo produzido. Existem todavia exceções e uma delas está associada à intervenção de Diogo Ramada Curto. Este Para que serve a história?, composto por vinte e quatro reflexões da sua autoria, editadas maioritariamente no diário Público, parte justamente da constatação dessa ausência. Não é por acaso que, no sentido de a contrariar, toma Marc Bloch – o pioneiro da renovação historiográfica dos Annales e o defensor do compromisso do historiador com a cidadania que os nazis assassinaram – como uma referência primordial.
Como assinala no prefácio Angela Alonso, «os intelectuais são a tópica que trespassa o livro», tanto sob o ponto de vista da sua inscrição institucional, como no que respeita à sua dimensão de inovação e «ímpetos de reprodução» do seu discurso. Mas os escolhidos por Ramada Curto são sempre historiadores ou produtores de conhecimento que de algum modo souberam cruzar os seus interesses e a sua atividade reflexiva com os domínios específicos da história. Com este capital humano como ponto de partida da escrita, o volume distribui-se por cinco partes: a primeira ocupa-se da relação nem sempre pacífica entre história e ciências sociais; a segunda do lugar dos historiadores enquanto intelectuais, no sentido político, pleno, do conceito; a terceira dedica-se a aspetos mais objetivos do relacionamento entre a história, ensino e «campo cultural»; a quarta procura reconhecer algumas das controvérsias colocadas em Portugal aos atuais modos de «fazer história»; e a quinta atende aos problemas que levanta a biografia como subgénero da historiografia.
De uma ponta à outra, o discurso de Diogo Ramada Curto dialoga com a sua simultânea condição de professor universitário e de historiador, mesclando três aspetos, olhados no passado como incompatíveis, que aqui se consideram e completam de uma forma ativa: o papel de um conhecimento sério e aprofundado, a importância decisiva da vigilância crítica e a permanente atenção conferida ao lugar da história como fulcral para o rastreio do passado e, ao mesmo tempo, do campo da contemporaneidade. Apesar de aqui e ali integrar opiniões controversas – observe-se, por exemplo, a depreciação do trabalho de Tony Judt, acusado de «subjetividade confessional» e de integração num inaceitável star system, por contraposição com a declarada admiração pela obra de Eric Hobsbawm – este volume oferece, entre muitas outras vantagens, a de ajudar a expurgar o campo da história de um fechamento sobre si próprio. Exemplar do valor atribuído a este aspeto da atenção crítica é um dos mais incitadores artigos, cujo título sumaria toda uma intenção: «Monopolizou a universidade a vida cultural?» A resposta do autor só não é inteiramente afirmativa porque invoca o papel fecundante de uma tradição paralela de historiadores que a universidade portuguesa durante décadas depreciou: a protagonizada por figuras como António Sérgio, Jaime Cortesão, Vitorino Magalhães Godinho e Alfredo Margarido.
Diogo Ramada Curto, Para que serve a história? Tinta-da-China. 250 págs. Versão revista de artigo publicado na LER de Junho de 2013.