Por uma destas tardes, enquanto fazia algumas arrumações domésticas, revi um episódio contado por João Bénard da Costa num recorte do antigo diário Independente. O semanário, acessível nos arquivos, que nos lembra os longínquos dias em que pairava sobre o Portugal pós-revolucionário a ideia de que era possível ver uma direita jovem, culta e inteligente a nascer do nada. Contava-se nesse recorte que na noite de 17 de Maio de 1945, quando no cinema Politeama o filme Casablanca estreou em Portugal, no momento em que no ecrã A Marselhesa abafou Die Wacht am Rhein, o cântico alemão saído da Guerra Franco-Prussiana utilizado pelos nazis, o público lisboeta se pôs de pé, cantando também, em uníssono e alta voz, a canção que em 1796 se tornou o hino da França revolucionária e republicana.
Nesse tempo de resistência e grandes esperanças – tinham passado apenas dez dias desde que o almirante Dönitz assinara a capitulação da Alemanha nazi e sonhava-se por cá com a possibilidade do país se abrir um pouco aos ventos democráticos – não era ainda As Time Goes By, o tema cantado no bar do Rick por Dooley Wilson, que movia os corações cinéfilos. Interesses coletivos, bem maiores e mais urgentes que a celebração nostálgica, impunham-se num tempo em que, no meio dos maiores perigos, as grandes causas eram forçosamente levadas a sério. E por isso A Marselhesa era cantada com tanta certeza pelos espetadores portugueses que no escuro daquela sala se enchiam de coragem para ecoar o desejo de liberdade.
A este episódio junto um outro, vivido diretamente. Corria o ano de 1969 quando assisti, num cinema ao ar livre que na altura existia na cidade de Tomar, a uma projeção de Boinas Verdes, o filme rodado no ano anterior, com John Wayne como protagonista, que fazia uma clara apologia da intervenção americana no Vietname. A sessão acabaria num tumulto, com um grupo de jovens, a maioria deles estudantes universitários, alguns recém-chegados da crise coimbrã, a aproveitarem a ocasião para se manifestarem contra a Guerra Colonial. Um gesto que na altura bem poderia ter-lhes valido umas bastonadas da polícia ou mesmo a prisão.
Revejo estes dois episódios separados por mais de vinte anos e, de repente, tomo consciência de como tem um sabor amargo viver num tempo em que o medo do risco e a ausência de convicções acompanham a ideia, propagada pelos adeptos de uma cidadania mansa e passiva, segundo a qual cada um deve «viver a sua vida», desinteressado das grandes causas, geralmente difíceis e arriscadas, que a todos dizem respeito. Mas logo de seguida lembro-me também de como a História funciona por ciclos e concebo que à política do egoísmo e do desespero acabará por suceder, até como estratégia de sobrevivência, a lógica da partilha e da esperança. Não caída do céu aos trambolhões, mas imposta pelos que acreditam nela.
Publicado originalmente no Diário As Beiras.