Faço parte daquela parcela de portugueses, cujo tamanho desconheço mas que não será com toda a certeza pequena, que sem confiarem no Partido Socialista, ou mesmo sem jamais nele terem votado, o consideram, para o bem e para o mal, como peça basilar do regime democrático. Como este grupo a que pertenço é bastante heterogéneo, torna-se difícil caracterizar tal atitude de uma forma global, mas sou capaz de falar por mim. Na sua forma original, o PS é, a meu ver, o principal herdeiro local da velha tradição europeia social-democrata, reformista e anti-autoritária, aliando, pelo menos na teoria, uma preocupação com os direitos políticos dos cidadãos, com a proteção partilhada do seu bem-estar, com a salvaguarda da democracia representativa e com um ideal de mudança obtido de forma gradual e moderada. Essa é, ou foi, a sua matriz. Porém, o Partido Socialista não é apenas isso.
De facto, os anos no poder transformaram-no também, inúmeras vezes, numa área política aglutinadora de interesses pessoais e de clientelas, que sem colocarem formalmente em causa aquele ideário, trataram de o subverter, abastardando-o frequentes vezes aos olhos da maior parte dos cidadãos. Por isso se tornou tão difícil, a quem seja estruturalmente de esquerda, defender o PS como parte de uma solução justa para o país e não como parte do problema, corresponsável por um sistema corrompido, capaz de desacreditar a política como área de atividade nobre, necessária e respeitável, e inapto para alimentar um horizonte coletivo de esperança. Ainda assim, e como tanta dessa gente com a qual partilho esta perceção negativa, jamais vi o PS como um «inimigo», rigorosamente igual na essência aos partidos da direita, e do qual apenas uma parte das chamadas «bases» seria aproveitável para a reconstrução de um Portugal próspero, justo e… socialista.
Entretanto, a situação dramática que estamos a viver, para o lançamento da qual o PS teve e conserva uma quota-parte de responsabilidade, colocou numa nova base este processo. Independentemente do seu caráter reformista e de partido do «arco do poder», este vê-se agora confrontado com uma escolha difícil e decisiva. Aquela que o levará obrigatoriamente a optar entre uma vocação para a gestão do modelo neoliberal, que a dada altura aceitou quase acriticamente, ou o regresso a uma matriz socialista que, sem o caráter maximalista do passado, e sem excluir a necessidade de atender aos compromissos internacionais do país, mormente no plano da sua viabilidade financeira, implica uma posição corajosa de defesa, em todas as arenas, dos fundamentos históricos da independência de Portugal, dos direitos sociais dos portugueses e dos padrões mais essenciais de qualidade de vida que o regime democrático, com os seus defeitos e as suas qualidades, foi sendo capaz de construir.
Neste sentido, o PS está neste momento numa das maiores encruzilhadas da sua vida. Talvez mesmo a maior de sempre. Aquela na qual terá de escolher entre manter-se fiel à sua antiga matriz solidária e à sua tradição combativa, ou conformar-se a seguir o caminho da capitulação diante da degradação social que a lógica do capitalismo, através dos seus representantes não democraticamente eleitos, lhes aponta como inevitável. Esta eventual capitulação teria, aliás, consequências brutais para o partido: iria descaracterizá-lo ainda mais, esvaziando-o de grande parte da sua base social – assente, como é sabido, nas profissões liberais, na classe média e nos trabalhadores das cidades – e favorecendo os partidos à sua direita e à sua esquerda. Como estes últimos não têm ainda condições objetivas para governarem sozinhos, e tendo boa parte do eleitorado consciência disso, tal iria oferecer um balão de oxigénio à direita, prolongando a sua manutenção no poder e transformando Portugal, definitivamente, num país estéril, desigual e com uma democracia mitigada, tutelada por gestores internacionais. Irá o Partido Socialista, empurrado por Cavaco Silva, cair neste logro, autodestruindo-se como o fez o PASOK grego e deixando o país afogado no pântano?