Um dos resultados da crise financeira iniciada em 2008 foi a propagação de um conjunto de fábulas que, sob a forma de inquestionáveis «verdades», aparentemente tendem a determinar a inevitabilidade do «modelo neoliberal», apesar do seu estado comatoso. Dito de outra forma: a gravidade dos problemas surgidos em catadupa provocou em boa parte da opinião pública, não a rejeição mais ou menos radical deste modelo, mas antes a afirmação, aparentemente consensual, do princípio segundo o qual tudo o que aconteceu de mau se ficou a dever a décadas de políticas que ampliaram o papel do Estado social, restringiram a liberdade dos mercados e impediram a hegemonia da iniciativa privada. É com este pano de fundo, e com uma intenção assumidamente militante determinada pela necessidade de dissolver tais fábulas e de desconstruir falsos consensos, que um sociólogo, um historiador e um geógrafo compilaram testemunhos de especialistas capazes de os contestarem de forma documentada, consistente e ao mesmo tempo pedagógica. Na introdução, declaram a necessidade de se oporem a essa «fabricação do consentimento» que tem nas ideias do senso comum uma das mais poderosas forças motrizes. «Repetidas pelo discurso político, reproduzidas nas conversas de autocarro, reforçadas pelas histórias de alguma comunicação social», estas ideias são, na sua opinião, «essenciais no jogo de representações» que tem transformado o evitável em inevitável e tendido a qualificar como luxos um conjunto de direitos sociais e de fatores de qualidade de vida conquistados ao longo de décadas.
O volume distribui-se por diferentes áreas do real social nas quais intervém um processo de mitificação tendente a induzir consensos que conduzam os cidadãos a aceitarem a realidade «como ela é», inibindo-os de vislumbrar alternativas. Neste sentido, ele funciona como «uma espécie de manual de autodefesa intelectual», propondo-se «contribuir para libertar a compreensão do mundo – e, mais especificamente, do processo de crise que vivemos em Portugal – das mistificações, das crenças e das mitologias», que tendem a impedir a afirmação de outro horizonte que não o da austeridade, da desigualdade e da perda sistemática de direitos. As ideias enunciadas são muitas: «vivemos acima das nossas possibilidades», «gerir um país é como gerir uma casa», «o Estado deve ser gerido como uma empresa», «os direitos dos mais velhos estão a bloquear os dos mais novos», «há professores a mais e alunos a menos», «a cultura pode viver do mercado», «antigamente aprendia-se mais», «a culpa é dos políticos», e assim sucessivamente. Os capítulos nos quais se procura desarmar tais «verdades» estão, sem dúvida, associados a escolhas que situam os seus autores à esquerda do espetro político, mas não deixam de impressionar todos os que os leiam de mente aberta, pela informação pormenorizada que apresentam e pela demonstração consistente da vacuidade de tais ideias feitas. Propõem pois «a rotura com o senso comum» como passo primeiro para, no presente contexto de acentuada crise, encontrar um caminho que defenda aquilo que de melhor as últimas décadas nos ofereceram. Como conquistas a preservar, não como pecados que exijam uma penitência sem fim. Um único senão: alguns dos autores, ao procurarem combater os adversários no seu próprio terreno, recorrem por vezes a uma tonalidade algo defensiva. Embora, se assim não fosse, talvez a sua missão se mostrasse mais difícil de cumprir.
José Soeiro, Miguel Cardina e Nuno Serra, Não Acredite em Tudo o que Pensa. Mitos do senso comum na era da austeridade. Tinta-da-China. 256 págs. Versão do artigo publicado na LER de Julho-Agosto de 2013.