Conta o ator e apresentador australiano Ben Lewis que uma das fontes das quais se serviu para escrever «Foice e Martelo», um divertidíssimo livro sobre o manancial de piadas que circularam à socapa por todo o leste europeu antes da queda do Muro de Berlim (edição portuguesa da Guerra & Paz), foi «1001 Anedotas», volume da autoria do professor eslovaco Jan Kalina publicado em 1969 na cidade de Bratislava. Nele se compilavam pequenas histórias que corriam nos países do «socialismo realmente existente» satirizando os vícios dos regimes de partido único e dos seus burocratas. Vale a pena retomar a pequena história desta obra e dos efeitos que ela teve na vida do seu autor.
Kalina tinha proposto o livro para publicação três anos antes, quando a liberalização política que iria culminar na Primavera de Praga começava a ganhar fôlego, parecendo-lhe haver abertura suficiente para que o livro pudesse ser impresso e distribuído. Como era normal na época – e existem também anedotas sobre isso – não havia nessa altura papel bastante para o fazer, embora a tipografia não tivesse outras encomendas. Por isso, a obra teve de esperar e só viria a ser publicada depois de, em agosto de 1968, os tanques soviéticos terem entrado na Checoslováquia. Talvez por isso, a tiragem de 25.000 exemplares esgotou em apenas duas semanas.
Durante cerca de dois anos, o professor viveu em sossego a sua vida. Só depois de descobrir que existia um sistema de escutas montado no seu apartamento, e de começar a fazer piadas em voz alta sobre o facto, acabando mesmo por tirar fotografias dos aparelhos que enviou ao presidente Gustav Husák, é que foi preso. Durante o julgamento o acusador público perguntou-lhe: «O que mostrou ao escritor P. B. no seu apartamento a 16 de julho de 1970?» Kalina respondeu com uma piada apropriada à circunstância: «Recorda-se do investigador da polícia que pergunta ao acusado: ‘O que estava a fazer há cinco anos, a 23 de outubro, às 17 horas e 15 minutos?’ Pois o acusado respondeu rapidamente: ‘Lembro-me muito bem. Tinha um olho no relógio e o outro no calendário.’»
Entre as «provas» de perturbação da ordem pública apresentadas estavam testemunhos de funcionários administrativos da tipografia, segundo os quais os tipógrafos se tinham rido tanto durante a composição do livro que eles tinham ido até à oficina para perceber o que se passava. A acusação afirmou ainda que o dispositivo de escuta encontrado pelo acusado debaixo do soalho fora lá colocado por agentes ocidentais. Mas este contrapôs: «Eu nunca contei essa anedota!» O julgamento durou três dias e no final Kalina foi condenado a dois anos de prisão «por colecionar e divulgar gravações áudio e textos ultrajantes e com conteúdo hostil para com o Estado.» Depois de cumprir a pena, conseguiu sair do país e foi viver para a Alemanha, onde continuou a contar anedotas incómodas. Já o livro que publicou apenas veio comprovar aquilo que já se sabia: o humor pode ser uma forma de resistência contra os regimes que lhe dão matéria para existir.
Publicado originalmente no Diário As Beiras. Versão revista.