Mais que qualquer outra cidade portuguesa, a meio de setembro Coimbra reanima-se com o regresso às aulas. É verdade que já não se nota tanto a diferença, ainda percetível há uma vintena de anos, entre o deserto que eram as férias do verão e o movimento que depois delas ia lentamente regressando. Muitas coisas mudaram entretanto: o número de residentes disparou mas o dos alunos universitários manteve-se idêntico, e o crescimento da classe média, dos serviços, do comércio e do turismo fez com que a urbe passasse a depender menos dos estudantes. A própria vida universitária sofreu uma mudança, ampliando-se a rede de vivências e de relações com outras regiões e tornando-se menos exclusiva a ligação dos universitários com a cidade. No entanto, quem nela mora ou frequenta as suas áreas mais ocupadas pela vida estudantil continua a dar conta de que, de repente, quando o verão se aproxima do fim, há um novo ruído no ar e ocorre uma metamorfose da paisagem humana.
A chegada dos estudantes tem agora, porém, um aspeto bem diverso daquele que tinha num passado ainda não muito distante. Já não são tanto os cafés que se animam, os cinemas que têm mais gente, os espetáculos que esgotam, os anfiteatros que se enchem, as livrarias que têm mais movimento, os jogos de futebol com mais público, os organismos culturais e desportivos da AAC com filas para novas inscrições, as reuniões que começam a preparar o novo calendário reivindicativo. O que se torna mais visível é agora, principalmente, a atmosfera de «festa permanente» que tem alterado profundamente, no decurso de praticamente todo o ano letivo, as características da vida académica. É o regresso imediato das praxes obsessivamente non-stop, são os bares que se enchem à noite, são os espaços que medeiam as áreas universitárias que integram um ambiente essencialmente festivo, parecendo a atividade letiva, para a maioria, um mero pretexto para estar em Coimbra a fruir este ambiente.
Isto remete-nos para uma transformação substancial, observável por quem, de dentro ou de fora, tenha uma perspetiva crítica desta «nova Coimbra». Faz parte da vida estudantil, como não poderia deixar de ser, uma componente de diversão e até de aventura: um tempo para rir, para dançar, para ouvir música, para namorar, para beber, para passear sem preocupações pelas ruas ou pelas redes sociais, para conhecer toda a espécie de gente e ter experiências únicas, até para dormir mais do que o pode fazer quem, com uma profissão, tenha horários rigorosos a cumprir. É normal, é saudável e, afinal, se não se fizer isso intensamente aos dezoito ou vinte anos, quando se fará? Só que a tradição estudantil coimbrã incorpora também, pelo menos desde o século XIX, fortes dinâmicas culturais e de mobilização cívica que têm sido parte importante da sua identidade. Aliás, por isso mesmo, até há pouco tempo a academia e aqueles que nela se formavam marcavam tantas vezes os destinos da vida portuguesa. É pois algo espantoso, ou no mínimo lastimável, num tempo tão difícil de crise social, nacional e também universitária, que irá condicionar para pior os destinos daqueles que são agora estudantes, se vejam tantos universitários mais interessados em pôr colegas de cócoras ou a beber até cair do que em mobilizar-se para a experiência de aprendizagem e participação que a passagem por Coimbra sempre integrou. É pena que na melhor, mais enérgica e mais criativa fase da vida se opte por fazer da realidade um mero parque de diversões. Porque ser «estudante de Coimbra» é também dignificar uma tradição de conhecimento do mundo e de reivindicação de futuro.
Publicado originalmente no Diário As Beiras. Versão revista e ampliada.