Ainda as praxes

praxis

1. Voltou a reacender-se o interminável debate público sobre as «praxes académicas». Trata-se de uma discussão quase sempre bastante crispada, opondo os que nelas vêm uma forma de viver a academia e, presumem, de salvaguardar as suas tradições, aos que as recusam liminarmente como inúteis, obtusas e detestáveis. Deste debate autoexcluem-se infelizmente os atuais estudantes «praxistas», que a põem em prática de forma automática, quase sem qualquer preocupação crítica com as suas origens, formas, significados e consequências. Deixo claro que não sou neutro neste debate, pois rejeitei-as há muito, antes até de ser estudante universitário, não tendo mudado de opinião. Não o faço, porém, a partir de uma atitude cega e intransigente.

A larga, larguíssima, maioria dos estudantes da minha geração não foram pró ou contra a praxe. Ignoraram-na simplesmente. Abandonando como caducas práticas que já nada tinham a ver com o mundo, as expectativas e os compromissos que eram os seus. Ao longo da década de 1960 foi perdendo força e razão de ser, transformando-se, mesmo em Coimbra, seu habitat natural, em mero ritual, vestígio folclórico de uma identidade passadista em confronto com um sentir coletivo que estava a mudar muito rapidamente. E quando, em 1969, a proclamação do «luto académico» no contexto da crise universitária a suspendeu formalmente, quase ninguém sentiu a sua falta. Prova disso, até ao final dos anos 70 contavam-se pelos dedos aqueles e aquelas que procuraram retomá-la, invariavelmente identificados com os setores políticos mais à direita. A luta, pessoal ou partilhada, por uma sociedade mais justa, igualitária e democrática, rejeitava, como um anticorpo, práticas que simbolizavam o autoritarismo e a subordinação no quotidiano da vida estudantil.

2. Regresso entretanto ao presente, e a um contexto muito diverso, para sublinhar aquelas que são algumas das falsas ideias, dos enormes equívocos e dos lamentáveis sinais que as praxes consubstanciam, em regra sem que os seus praticantes disso tenham sequer consciência. Desde logo, possuem, de acordo com os seus próprios códigos, um tempo circunscrito, não valendo para praticamente todos os dias do ano letivo e para todos os espaços, como tem vindo ultimamente a acontecer. Não são também uma forma de integração social no meio, dado apresentarem-se à generalidade dos estudantes novatos, mesmo àqueles que parecem aceitá-la, como um dever, imposto pela coação e pelo medo da exclusão. Não são ainda um instrumento de igualitarização, uma vez que compelem ao oposto ao exponenciarem fatores de diferenciação hierárquica.

Por outro lado, as formas que têm tomado, cada vez mais violentas nos processos e nas linguagens – embora em Coimbra nada se passe de comparável aos exageros chocantes, tantas vezes criminosos, levados a cabo noutras universidades e escolas superiores – tendem a representar e a enfatizar alguns dos aspetos mais criticáveis e negativos dos tempos que vivemos, como o regresso do conformismo (a aceitação, de cabeça baixa e olhos no chão, do exercício arbitrário da autoridade), do elitismo (a presunção da condição estudantil como «própria», privilegiada e dissociada do todo social), da despolitização (a vivência deste tipo de experiência como preocupação central em tempo de crise gravíssima do país, das famílias e da própria academia), e do autismo cívico (exercendo-se sem qualquer ligação ou empatia real com a cidade, o meio circundante e até os outros setores da academia, que invariavelmente a ignoram ou desprezam).

3. Verifica-se acima de tudo, neste ressuscitar das velhas praxes – que a história da comunidade estudantil mostra até terem sido fortemente rejeitadas noutros momentos, próximos ou recuados da longa história da universidade portuguesa –, a presença de uma noção muito discutível de tradição. Noção que dela recupera, quando não a subverte, os momentos menos bons (a repetição, a aceitação de uma ordem julgada indiscutível), esquecendo que existe, mesmo na academia, também uma tradição de contestação, de resistência, de liberdade e de descoberta fraterna do mundo, que não passa pela repetição mimética e acrítica de palavras e de gestos que pouco ou nada têm a ver com o nosso tempo e a vivência da democracia. Afinal, como o provam tantos estudantes que, correndo riscos, têm rejeitado e continuam a rejeitar essas práticas arbitrárias e humilhantes, viver a Universidade, conhecer um mundo que se abre numa fase importante da vida, integrar-se num espaço de amizade, partilha e experiência do novo, divertir-se à grande num tempo no qual essa é uma prática higiénica e necessária, pode tomar caminhos bem diferentes. Basta usar a imaginação e levantar a cabeça.

Publicado originalmente no Diário As Beiras. Versão revista e um pouco aumentada.

    Atualidade, Coimbra, Democracia, Direitos Humanos, Opinião.