É sempre difícil fazer uma apreciação dos resultados das eleições autárquicas fundada apenas em operações simples feitas com a máquina de calcular. A dificuldade é imposta pela intervenção de fatores pessoais (como as capacidades ou o prestígio público de determinados candidatos), circunstâncias locais (entre eles as redes clientelares ou a existência de problemas regionais muito concretos) e particularidades orgânicas (sobretudo no que diz respeito à apresentação de coligações eleitorais e, agora, também ao crescente papel das listas de independentes). Por isso, nada como tentar transformar o complexo em simples e olhar as eleições não na mera perspetiva dos números, mas sob um ângulo mais amplo, capaz de permitir a observação de algumas das suas dinâmicas.
É relativamente fácil dizer que a derrota da direita é inequívoca, mesmo tendo em linha de conta uma ou outra vitória do PSD – Braga, cansada do arqui-dinossáurico «mesquitismo», foi o único caso verdadeiramente significativo – e também os malabarismos interpretativos do CDS. Politicamente somados os dois partidos, a sua derrota foi grande e em toda a escala, claramente determinada pelo descontentamento da maioria dos cidadãos perante as desgraçadas políticas do governo da República. Mas se a direita perdeu, terá a esquerda ganho? Se reduzíssemos a análise a meras operações aritméticas e à escala estrita do local, com certeza que sim, à exceção do resultado realmente péssimo do Bloco de Esquerda. Mas se fizermos o que há a fazer, observando todo o processo a uma escala macroscópica, o retrato emerge bem diferente.
O PS obteve, sem dúvida, o maior número de mandatos e de votos, mas em muitos casos – o de António Costa é excecional e requer uma outra dimensão de análise – essa vitória saiu prejudicada pela pobreza política e pela opacidade de muitos dos seus candidatos e programas, bem como pela recusa do partido em estabelecer compromissos reais com outras forças, seguro de uma vitória determinada pela rejeição do governo e pela intervenção controlada das suas próprias redes clientelares. A qualidade e o discurso de um grande número de candidatos do partido, apresentando-se, e ganhando até em alguns casos, sem um programa digno ou uma estratégia percetível e mobilizadora, fundada em slogans primários e nos generosos financiamentos de campanha, é pouco animadora. Sobretudo se observarmos esta situação na lógica do relançamento de um PS mais assumidamente à esquerda e realmente alternativo, em termos de governação, às políticas da direita.
Já o bom resultado do PCP/CDU é inegável, tendo a ver com fatores diversos: do prestígio local de alguns dos seus candidatos, e da tradição que oferecem de uma gestão autárquica ágil e rigorosa, a uma capitalização do descontentamento popular no atual contexto de crise. Mas ela integra também um fator negativo, traduzido na decisão partidária de inviabilizar quaisquer coligações locais à esquerda, fosse qual fosse o concelho ou a região do país (o caso do Funchal é, sob este aspeto, particularmente notório), apesar de instado a fazê-lo por outras correntes. Se o tivesse permitido, seria provavelmente mais difícil capitalizar apenas para si alguns resultados eleitorais, mas estimularia com toda a certeza dinâmicas de aproximação e de mudança, na escala de um grande arco da esquerda, imprescindíveis para a produção de uma alternativa real ao governo do país. A tradicional política dos «baluartes» pode ser excelente para a autoestima do partido, para cálculos impressionantes e mapas coloridos, mas nada resolve como via para um projeto de mudança com dimensão nacional.
O resultado do Bloco de Esquerda foi mau, sem dúvida, mesmo tendo em linha de conta a participação em candidaturas unitárias com uma votação apreciável ou muito boa que não foram contabilizadas no todo nacional (como a dos Cidadãos por Coimbra ou a do Funchal). Mas não terá sido grande surpresa, dada as insuficiências que o partido experimenta em termos de implantação local e da preparação de quadros experientes e reconhecidos neste domínio. Consequência, aliás, de uma das críticas que diversos setores da esquerda, muitos deles seus votantes ou até militantes, têm feito a uma intervenção pública excessivamente centralista e fundada na iniciativa parlamentar ou mediática. A incapacidade para a assunção de uma atitude claramente autónoma em relação ao PCP – ainda que admitindo colaborações com este, que ocorrerão, aliás, mais cedo ou mais tarde –, evitando mostrar claramente o que distingue os dois partidos, também não tem ajudado a gerar apoios consistentes. No entanto, as notícias da morte anunciada do partido, sugeridas por analistas pouco conhecedores da sua dinâmica nuclear, é, como diria Mark Twain, «claramente exagerada». Embora esteja numa encruzilhada, o Bloco tem uma dimensão política, sociológica e cultural própria, que não encontra de momento substituto.
De tudo isto, resulta claro que nestas eleições, se tivermos principalmente em linha de conta o que elas contêm como sinal para a evolução próxima futura do país, que a direita perdeu, mas a esquerda, de facto, também não ganhou claramente. Para esta, há, independentemente das intervenções conjunturais no plano nacional, um caminho ainda longo por percorrer. Bem mais difícil agora do que o era há três meses, diga-se, uma vez que o processo de preparação das candidaturas e a evolução da campanha eleitoral reabriu algumas feridas e reinstalou certas desconfianças. Mas nada que a vida não resolva.