Os resultados do Bloco de Esquerda nas eleições autárquicas têm suscitado algumas leituras críticas aceitáveis, mas também, e sobretudo, um vendaval de observações infundadas e de vaticínios de um desaparecimento à vista. A verdade é que a maioria dos analistas políticos mais lidos e comentados tem manifestado a propósito do tema uma inesperada cegueira, olhando aquilo que é certo e seguro – os números, quase todos eles realmente maus – mas não o que se coloca, como cenário, muito para além das circunstâncias imediatas. A morte anunciada do Bloco é pois, sob esta perspetiva, claramente exagerada. E se por hipótese ela pudesse vir a ocorrer, traria consigo, com toda a certeza, consequências muito negativas para a vida democrática, para o nosso futuro comum e até para as expetativas de muitos dos que vêm agora no BE um pássaro de asas cortadas.
Os resultados foram maus, sem dúvida. Mesmo tendo em linha de conta a participação em coligações com uma votação apreciável, ou mesmo muito boa, mas que não foram contabilizadas no todo nacional, como a dos Cidadãos por Coimbra, com a participação do Bloco mas que em muito o transcendeu, ou aquela que fez história no Funchal. Algumas campanhas foram também mal pensadas: propor-se, por exemplo, «virar ao contrário» uma cidade com uma identidade tão forte como o Porto terá sido, no mínimo, imprudente. Não terão, no entanto, sido uma surpresa para quem conhece as carências e os problemas do partido. As insuficiências que experimenta em termos de organização local, de intervenção no quotidiano de associações, sindicatos e empresas, da preparação no terreno de quadros experientes e reconhecidos, e até da definição clara e atempada de uma política de alianças no campo da esquerda, tornaram inevitável o que aconteceu. Deve-se boa parte disto, aliás, a uma atividade pública excessivamente fundada na intervenção parlamentar e apoiada na visibilidade mediática oferecida pelas televisões. Ao mesmo tempo, a incapacidade para assumir uma atitude autónoma em relação ao PCP, mostrando claramente o que distingue os dois partidos em termos de programa político, de base social de apoio, de projeto de governação ou de atitude perante o mundo moderno e a sociedade de bem-estar, também não tem ajudado a ganhar consistência e a ampliar os apoios.
E todavia, com todos os seus defeitos, contradições, inconsistências e fragilidades, o Bloco integra, para além de um quadro de militância generosa, uma dimensão sociológica e cultural absolutamente única, sem substituto em termos de representação política de uma parte importante dos portugueses. É verdade que, mesmo após a saída de algumas franjas mais radicais, contém ainda setores dogmáticos e incapazes de pensar uma solução de governabilidade que não passe pelo extremar dos conflitos sociais e pelo devaneio de um regime redentor mais ou menos mitificado, mas representa muito mais do que isso. Principalmente um amplo setor da pessoas de classe média, de intelectuais, de jovens, de trabalhadores com maior formação técnica, de ativistas de causas avessos aos partidos tradicionais, que precisam de quem os represente. Já terão os analistas que se apressaram a fazer o funeral do Bloco conjeturado sobre o que seria da grande área da cidadania e do eleitorado de esquerda que não se revê no aparelhismo que domina o PS ou no controleirismo do qual o PCP tarda em libertar-se? Órfã, ela iria em boa parte engrossar as fileiras da abstenção ou, pior, as de um perigoso antipartidarismo. A par de outras organizações de caráter mais inclusivo e informal, também por isso é indispensável a intervenção política do Bloco.
Só que a manutenção deste papel aglutinador e de representação não se obtém por um mero ato de vontade. Requer um pensamento estratégico melhor definido, uma identidade percetível pelos militantes e pelas pessoas comuns, uma mais eficaz organização em rede, uma atividade no terreno do quotidiano mais próxima e mais consistente, uma voz que saiba dar voz também a quem a não tem ou a não toma. Por isso precisa o Bloco de se repensar e de se reorganizar, libertando-se de uma vez por todas desse desgaste de energias aplicadas a equilibrar internamente as tendências fundadoras. Ainda que tal superação possa, inevitavelmente, gerar alguns descontentes e trânsfugas, só ela pode desbloquear o seu futuro. Tendo sempre em linha de conta que a democracia pode viver sem o Bloco, mas que para muitos cidadãos tal seria viver sem coisa alguma que lhes alimentasse a esperança.