Todos temos, daquela fase da vida que medeia entre os 6 e os 12 anos, lembranças ténues, esparsas e invariavelmente aleatórias. Nada recordamos de factos reconhecidamente importantes – um exame decisivo, o passamento de um familiar, o primeiro devaneio vagamente amoroso – e, de repente, percebemos que alguma coisa na qual ninguém mais reparou, insignificante para os outros mas para nós decisiva, ficou cravada na memória que nos cabe. Perfazem-se hoje exatos 50 anos sobre o desaparecimento de Edith Piaf e lembro-me muito bem da estrada do norte, da paisagem húmida e verde, sobre as quais, sentado no banco de trás do Volkswagen carocha, pude ouvir na rádio em onda média a notícia da sua morte. Logo seguida da passagem desse hino à vida, tão pessoal e triste e redentor, que é «Non, je ne regrette rien». Com a idade que tinha, não conhecia uma palavra de francês, não sabia que a Piaf falava da vida vivida, mas julgo ter sido aquela a primeira vez que percebi, de uma forma silenciosa mas inesquecivelmente intensa, que a presença de alguém nem sempre se dissolve com a sua morte.