A 19 de outubro completou-se um ano sobre a morte de Manuel António Pina. O poeta, escritor de prosas várias, o cronista obstinado, o homem dos jornais, dos seus amigos e da vida dele. Na vaga quase unânime de elogios e recordações que inundou diários e semanários, rádios e televisões, blogues e redes sociais, duas facetas suas emergiram mais vincadamente. A primeira recordava «o Pina», assim lhe chamavam sempre os seus próximos, os seus amigos, como alguém que era rigorosamente aquilo que parecia; a segunda insistia na falta que nos faz por ter interpretado um papel público único, que mais ninguém parece estar em condições de preencher.
Falei com ele apenas por duas ou três vezes, nos últimos anos fomos trocando uns curtos e espaçados mails noturnos, li-o muito, sobretudo, ao ponto de comprar exemplares de jornais e revistas que pouco me interessavam só por causa dos seus escritos. Mas nada mais. Tal bastou, no entanto, para compreender que as marcas essenciais da sua obra multíplice pouco ou nada tinham de ardiloso nas vozes que foram tomando: nas suas diferentes faces, eram ele, sempre ele, o Pina, com os defeitos e qualidades que qualquer um podia conhecer. E eram ele principalmente porque jamais, nos ecos que foi nos oferecendo, nas escolhas da escrita, procurou esse «esforço de consenso» que é sempre o expediente da mediocridade. Assim, sem artifícios de maior, projetava a crítica de peito aberto, a ironia sem medos, a evocação da fraternidade, o louvor da memória, o respeito por quem lho merecia, o enjoo da mesquinhez, a rejeição do arbítrio. Sempre com aquela humildade calorosa de quem leva a sério não se levar demasiado a sério.
Talvez por isso o Pina, sobretudo o Pina-cronista, tanta falta agora nos faça. A opinião democrática, da qual é a crónica política componente essencial, dada a capacidade que contém para pensar de forma crítica e combativa para além do imediato, sobrepondo-se ao pequeno jogo dos interesses imediatos e das pequenas raivas sem sentido, precisa muito de vozes como a sua. Nestes tempos tristonhos e sem chama, arruinados por uma crescente incapacidade para acreditar no que nos dizem ser presente ou talvez o futuro, falta-nos pois a sua voz serena mas sempre comprometida. Que não se coibia de destratar os poderes sem cérebro ou dimensão, as iniciativas obtusas ou de curtas vistas, os logros acompanhados de cantos de sereia, viessem eles de onde viessem. Inclusive do campo da esquerda, que foi sempre o seu. E como o Pina o fazia! Com uma atenção cuidadosamente simples, por vezes (ou sempre?) com uma dimensão poética, de forma atenta e afirmativa, e sem que para tal precisasse levantar a voz. Intervindo sem descanso – e como, confidenciava, tantas vezes lhe apetecia descansar! – na vida das coisas que partilhamos com os outros ou apenas connosco.
Ficámos órfãos. Sem quem nos diga tão bem, sem outra máscara que não a de um outro igual a nós, aquilo que vai «na alma da gente». Como o fez na penúltima crónica que publicou, saída no JN do 1º de agosto de 2012 a propósito de algo tão importante, tão fundamental, como os três melros acabados de nascer na trepadeira de um muro do seu quintal. «Eu sei que tudo é política, que, como diz Szymborska, ‘mesmo caminhando contra o vento / dás passos políticos / sobre solo político’. Mas estou farto de Passos Coelho, de Seguro, de Portas, de todos eles, da ‘troika’, do défice, da crise, de editoriais, de analistas!» Simulando o desânimo e a fuga, alimentando um certo enjoo da vulgaridade que nos comanda, o Pina, sagaz sempre, e ainda otimista, acendia o seu contrário: «a política é só uma ínfima parte, a menos sólida e menos veemente, daquilo a que chamamos impropriamente vida». Assim o possa entender quem se esquece do que é verdadeiramente indispensável e duradouro.
Versão retocada de um artigo publicado no Diário As Beiras.