Mais de três décadas após o suicídio de Adolf Hitler no seu bunker berlinense, uma perspetiva bastante redutora da fulgurante ascensão do nacional-socialismo alemão era ainda dominante entre os historiadores. De facto, o nazismo era visto como resultado exclusivo de uma combinação letal de maldade alucinada, protagonizada por uns quantos dirigentes e ativistas, com as circunstâncias de uma época perturbada e propensa a acreditar nas propriedades redentoras da experiência totalitária. Somente para o final do século se começou a compreender e a dar como adquirida a intervenção de outros aspetos até então relevados, como o aplauso ou o silêncio cúmplice de um grande número de alemães, ou a ingénua cegueira de muitos dos responsáveis políticos europeus da altura. Em O Império de Hitler, o britânico Mark Mazower expõe uma outra forma de entender o que aconteceu, não totalmente ignorada por outros historiadores do nazismo mas raramente considerada com o merecido destaque.
Mazower não é um daqueles profissionais exclusivistas da micro-história ou das monografias encerradas em si próprias. Os seus livros são sempre estudos que cruzam temas diferenciados com uma preocupação, mais funda e persistente, que os percorre e transcende. A sua história dos Balcãs, a da ocupação da Grécia pelas tropas do Eixo ou a da cidade de Salónica convergem num interesse específico, materializado na compreensão das nuances e das vicissitudes experimentadas ao longo dos últimos cem anos pela ideia e pela experiência de Europa. A abordagem extensiva, produzida neste livro, das origens, da curta vida de seis anos – ao contrário dos mil que o Führer predissera – e das consequências da queda do império alemão, não escapa a esse particular interesse. Observando tais aspetos a partir de um ângulo muito próprio, aberto na confluência daquele que foi o projeto imperial do nacional-socialismo com a capacidade dos seus mandatários e executantes para o levarem a cabo e o legarem às gerações seguintes como uma mancha indelével no mapa do continente.
O trabalho de Mazower confronta-se visivelmente, desde o início da preparação desta obra, com uma dificuldade: o estado de amnésia coletiva que, após o termo da Segunda Guerra Mundial, quase apagou durante décadas a memória de uma Alemanha agressiva e politicamente ambiciosa, construída sobre projetos e iniciativas de conquista. A verdade, no entanto, é que o ideal de uma Grande Alemanha, erguida a partir das ruínas revolucionárias de 1848, do crescimento do projeto pangermanista de Bismark e dos devaneios expansionistas esboçados na aurora da Primeira Guerra Mundial, esteve na origem da ideia de uma Lebensraum nacional-socialista. Esta justificaria então o estabelecimento de um território alargado, de uma «casa germânica» que se estenderia desde a Alsácia-Lorena até aos Estados da Europa Oriental e do Báltico, onde a população de origem alemã, apesar de minoritária, permanecia numerosa e particularmente ativa no plano político, devendo por isso, na antevisão dos pangermanistas, expandir-se no interior de um amplo anel de segurança.
Acontece que o ideal unitarista inicial, proposto pelos nazis às diversas comunidades de «alemães étnicos» (Ein Reich, Ein Volk, Ein Führer!), foi, de acordo com o historiador inglês, profundamente subvertido pela intervenção de dois fatores decisivos: o caminho de violência extrema, irracional, imposto pela guerra declarada em 1939, e as ambições megalómanas, egocêntricas e politicamente pouco consistentes, de Adolf Hitler. O diagnóstico de Mazower sublinha assim o lugar central e decisivo da iniciativa de guerra, dos assassínios em massa e da política de brutalidade exercida pelo exército regular – tantas vezes piedosamente desculpabilizado – e pelas tropas especiais, na construção de uma unidade política aparentemente indestrutível mas de facto frágil. Até os aliados locais funcionavam frequentes vezes como elemento de bloqueio da integração nessa incompleta unidade, ao não aceitarem o diktat absoluto dos representantes locais do governo alemão. Mazower enfatiza também o contributo da personalidade de Hitler, os seus projetos irrealistas de colonização instantânea dos territórios mais orientais e de redução à condição de escravos dos seus povos, tal como a sua incapacidade para negociar equilíbrios nas áreas ocupadas e promover uma gestão de recursos que não assentasse nos atos de pura rapina que a guerra possibilitava. Uma atitude que tornava inevitáveis a alienação de alianças com os poderes locais, a subsequente derrota militar e, por último, a derrocada do sonho imperial.
A gestão territorial pela via exclusiva do terror e da pilhagem, associada à cuidadosa promoção da descriminação racial e das ações de extermínio, foi, ainda recentemente, abordada por Timothy Snyder em Bloodlands (Terra Sangrenta na tradução portuguesa editada pela Bertrand). Snyder tratou com detalhe os acontecimentos ocorridos nessa região, entre o Báltico e o Mar Negro, desde o leste da Polónia até à parte mais ocidental da Rússia europeia, contendo a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia, sobre a qual, em momentos diferentes, a dominação obtida pela violência sistemática e sem quartel, imposta por Hitler e por Estaline, exterminara uma porção muito significativa, e não apenas aquela de origem judaica, dos povos daquela região. Mas aquilo que esta obra de Mazower faz é, olhando objetivamente a administração alemã, perceber de que modo essa brutalidade acabou por virar-se contra quem desempenhava o papel de agressor.
Toda a estrutura de O Império de Hitler procura demonstrá-lo, desenhando a cronologia dos acontecimentos que conduziram a Alemanha à guerra, os meios de instauração transfronteiriça da Nova Ordem germânica e a integração de todo este processo na evolução global das políticas europeia e mundial. No fundo, o seu autor esforça-se por provar que o edifício imperial erguido pelos nazis assentou num enorme equívoco. Em vez de se voltar para a reorganização equilibrada de uma ordem internacional que pudesse servir a Alemanha, teve como objetivo central, obsessivamente perseguido, a missão de civilizar, de pistola em punho, um «Leste Selvagem» olhado como base de uma ameaça étnica, mas também como terra prometida, que competia aos alemães possuir e usar em seu proveito. Hitler, na juventude um leitor apaixonado dos livros de viagens e aventuras de Karl May, terá vislumbrado esse Leste como uma «imensa pradaria», território disponível para a materialização do «sonho alemão», tal como, em alguns dos romances de May, o faroeste o fora para os colonos americanos que avançaram para novos territórios exterminando ou dominando os incómodos índios.
Esta pulsão da conquista, cuja origem e desenvolvimento são criteriosamente documentados neste estudo de Mark Mazower, pode, é verdade, ter atingido proporções extremas e manifestamente irrealistas durante o período da governação expansionista e da brutal ocupação imposta pelos nazis. Mas resulta claro da sua leitura que esta intervenção emergiu de um desejo de domínio com fundamentos históricos enraizados numa vocação expansionista, periodicamente reemergente, que os anos mais recentes não terão diluído. Como afirmou uma vez Hans-Dietrich Genscher, antigo membro das Juventude Hitleriana, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da antiga Alemanha Ocidental entre 1974 e 1992, gradualmente convertido em adepto do equilíbrio europeu e, por tal motivo, em opositor convicto da intervenção armada dos alemães fora das fronteiras estabelecidas no final da guerra, «jamais deve dar-se licor de chocolate a um alcoólico».
Mark Mazower, O Império de Hitler. O domínio nazi na zona ocupada. Trad. Miguel Mata. Edições 70. 740 págs. Publicado na LER de Outubro de 2013.