Álvaro Cunhal completaria hoje 100 anos. Nos últimos meses têm-se multiplicado as iniciativas destinadas a celebrar a data, evocando a vida, a intervenção e o legado daquela que foi uma das figuras centrais do século XX português. E que foi também uma das vozes mais respeitadas dentro dos setores, hegemónicos no território da esquerda e no interior do movimento comunista internacional, que pautaram a sua ação pelo «exemplo de Lenine» e pelo modelo de construção do socialismo levado a cabo a partir de 1917 na antiga União Soviética. Tais iniciativas têm assumido diferentes formas: desde uma reedição anotada dos seus escritos a livros de pendor mais ou menos biográfico, passando por estudos sobre as muitas vertentes da sua intervenção pública, dossiês nos jornais, colóquios, debates, exposições, álbuns fotográficos, filmes ou programas de televisão.
Na sua diferença, no formato e na dinâmica interpretativa que escolheram, quase todas têm coincidido na afirmação de dois aspetos que, assumidos com divergente argumentação, são comuns às leituras de Cunhal propostas tanto à esquerda quanto à direita do espetro político. O primeiro tende a divulgar a ideia de uma grandeza de Cunhal associada à sua incomum capacidade para, no plano da conservação das convicções e da linha de conduta, se manter coerente ao longo da vida. A segunda leitura, mais recente, procura demonstrar que Cunhal não era afinal aquele homem de mármore, sem vida pessoal e implacável para com aqueles que não eram os seus, que alguns discípulos imaginaram ou que muitos dos inimigos pintavam, apresentando-o antes na simpática pele de «pessoa como as outras». Sirvo-me da tentativa de responder a duas perguntas para falar destes aspetos.
Primeira pergunta: foi Álvaro Cunhal um expoente de coerência? A resposta dependerá sempre do que possa entender-se por coerência. Para a direita, a leitura de Cunhal identifica-a mais com a casmurrice – defeito que não possuía – ou com a capacidade para manter imutáveis valores que podem aproximar quem os torna seus de um certo conservadorismo. Encontra no seu discurso, nomeadamente na incorporação de valores abstratos de «patriotismo», de «trabalho» ou de «honestidade», algumas palavras que lhe são caras. Já para uma boa parte da esquerda, a coerência tem outros sinais: é associada à irredutibilidade ideológica, à defesa dos princípios-âncora do materialismo dialético e do marxismo-leninismo, e, nos últimos anos, à manutenção como positivo do legado histórico do «socialismo realmente existente». No entanto, se ponderarmos o percurso de Cunhal, veremos que essa irredutibilidade não é assim tão clara e que foi uma constante a sua capacidade para agregar convicções seguras e uma capacidade tática por vezes mais maleável e criativa do que se supunha.
Segunda pergunta: foi Cunhal «uma pessoa como as outras»? As tentativas de responder a esta questão têm resultado geralmente frágeis ou mesmo um tanto patéticas. Nos últimos tempos – tal como, paradoxalmente, aconteceu também em relação à biografia de Salazar – tem sido adiantado, para contrariar um relativo secretismo em relação ao que foi a imagem pública da sua vida pessoal, a ideia de que no plano dos afetos e das ligações familiares em nada se distinguiu de qualquer pessoa comum. Sublinha-se também a sua recusa do «culto da personalidade» e a contínua defesa, para si, «filho adotivo do proletariado», e para os militantes do seu partido, de princípios de modéstia e sobriedade. Todavia, o que nem sempre é claramente dito, mas sabe-o quem lhe seguiu os passos ou lhe segue agora o rastro, tal atitude funcionava muitas vezes como expediente prático que em muito o ajudava a afirmar a capacidade de direção e a impor a escolha política que considerava a mais correta. Fazendo no quotidiano e no privado «as coisas como os outros», tornava natural, e impunha pelo exemplo, o seu carisma e a sua vontade política.
Alguns equívocos têm, de facto, acompanhado a evocação-celebração dos cem anos do nascimento de Álvaro Cunhal, alimentando muitas vezes um processo de mitificação que, quando aplicado a outros vultos da história do comunismo, o próprio abominava. Mas muito de positivo tem também sido dito e escrito, particularmente no que respeita ao conhecimento da edificação complexa e gradual do seu pensamento, às suas hesitações, erros e falhas de perspetiva, às observação das suas posições em domínios menos visíveis ou presentes nos documentos oficiais, ao papel decisivo que desempenhou desde cedo e quase até ao final da vida de certa forma heróica que escolheu. Afinal, traços comuns a qualquer político que não tenha o estatuto de divindade, mas antes o de um ser humano falível, embora com uma capacidade invulgar para se destacar dos outros mortais. E Álvaro Cunhal, o «camarada Álvaro» como no seu partido muitos gostam ainda de se lhe referir, teve naturalmente esta qualidade. Talvez acima de qualquer outra.