Todas as cidades, em particular aquelas que têm uma longa história e por isso uma forte capacidade magnética, integram uma tensão entre a vida vivida e as representações que delas os livros vão guardando. Baudelaire, Kafka e Pessoa construíram «cidades literárias» que não se confundem com as descrições prosaicas dos que habitaram as ruas e casas de Paris, Praga ou Lisboa. Odessa, a cidade-porto ucraniana do Mar Negro, é todavia um caso singular, dado o seu percurso, composto de reminiscências nostálgicas e futuros plausíveis, ter sido em larga medida ficcionado através da escrita. Tanya Richardson, que a tem visitado inúmeras vezes, lembra, em Kaleidoscopic Odessa (2008), o seu caráter intenso e singular advindo de uma cultura complexa, de uma história sinuosa, de um cosmopolitismo que alimentou um forte sentimento de pertença e até de missão.
Vivendo a maior parte da existência real e da sua narração romanesca como território de fronteira e fábrica de sonhos, esta dupla condição determinou a construção de uma identidade local rara e particularmente enérgica. Entre a cidade aberta, de clima ameno, projetando de leste a oeste a imagem panorâmica de um cenário integrador de diferentes culturas e modos de vida, e a cidade soviética, erguida como bandeira de esperança de uma redenção humana representada à escala planetária, Odessa percorreu um trajeto pautado pela permanente de diversidade, tolerância e miscigenação, mas também de anarquia e revolução, que lhe conferiu um magnetismo projetado para além dos seus limites físicos.
A cidade aberta nasceu tarde. Em The Innocents Abroad, Mark Twain refere a visita que lhe fez em 1867 para evocar a estranha sensação de regresso, num cenário menos «oriental» do que presumira, à América das ruas amplas, modernas e frementes que havia deixado. Todavia, quando aportou a Odessa, algum caminho fora já percorrido desde que em 1794 uma nova urbe fora fundada sobre o lugarejo encostado ao fortim turco de Hadjibey. Para tal fora decisiva a intervenção do marechal Grigori Potemkin, o favorito de Catarina a Grande, que partira para o sul com a missão de alargar a soberania russa sobre a região repelindo a ameaça otomana. O levantamento da cidade como centro administrativo e militar foi, no entanto, da responsabilidade de José de Ribas, almirante de origem hispano-irlandesa que após a partida de Potemkin passou a representar na região os interesses da remota São Petersburgo. A Ribas, como depois dele a Richelieu e a Langéron, nobres franceses que tinham combatido Napoleão em terras russas, bem como a Mikhail Vorontsov, governador militar da região por cerca de trinta anos, ficará a dever-se a transformação da cidade no primeiro porto do império, projetando a expansão urbana e a abertura que surpreenderam Twain.
Este crescimento não dependia só das medidas administrativas e metas políticas impostas pelos representantes do poder central, mas da capacidade de atrair habitantes e de erguer o polo de dinamismo político e comercial que se esperava de uma cidade situada num dos limites mais instáveis do império. O desenvolvimento foi rápido: do nada, em cem anos Odessa chegou ao meio milhão de habitantes. Mas mais importante era a sua variedade humana: russos, naturalmente, e muita gente vinda dos meios rurais da Crimeia e da Bessarábia, mas também imigrantes albaneses, búlgaros, arménios, azeris, franceses, alemães, gregos, italianos, turcos, polacos ou judeus. O poeta Pushkin, que aqui viveu em regime de exílio interno entre 1823 e 1824, falava em carta a um amigo de um «ar cheio de toda a Europa», do caráter multilingue das conversas, das facilidades que encontrava para obter livros e jornais chegados de todo o lado.
A comunidade judaica, em particular, cresceu rapidamente, distribuindo-se pela cidade de um modo uniforme, sem se concentrar em guetos ou áreas exclusivas como acontecera noutras cidades do leste europeu. Parte substancial da prosperidade económica e demográfica, e da intensa vida intelectual de Odessa, ficou a dever-se à sua presença. No autobiográfico Uma história de Amor e Trevas, Amoz Oz evoca o caráter vivaz desse peculiar universo de matriz judaica do qual emergiriam figuras de projeção mundial que transportariam consigo a marca odessina, como Vladimir Jabotinsky, intérprete tutelar do sionismo e um dos promotores originais da independência de Israel, Isaac Babel, o escritor e jornalista, membro da primeira geração da intelligentsia bolchevique dizimada pelas purgas estalinistas, ou Leon Trotsky, que transportaria pela vida fora, até ao trágico epílogo mexicano, a tendência internacionalista própria do lugar onde nascera e começara a sua formação como revolucionário e homem de letras.
Essa foi a base cosmopolita e progressista sobre a qual foi desenhada a tradição intelectual de Odessa. Ponto de partida para a projeção de uma ambição que em muito transcendia o território estrito da cidade. Talvez por isso a tenham procurado Gogol, Tchekov, Tolstoi, Gorki, até Brodsky, a tenham amado à distância Dostoievski, Maiakovski ou Nabokov, e da sua imagem se tenham apropriado Balzac, Verne, Conan Doyle. Mas este não era um universo equilibrado ou pacífico. A diversidade demográfica, a par da localização na confluência de mundos diferentes, e por vezes opostos, impuseram pesados conflitos sociais. Em Odessa: Genius and Death in a City of Dreams (2011), Charles King descreve um território dinâmico «repleto de aristocratas, gangsters, heróis e vilões». Num dos Contos de Odessa, publicados por Babel já em 1931, o personagem Benya Krik surgia como o lendário chefe do gang judaico que dominara parte da cidade. E a revolta dos trabalhadores locais ocorrida em 1905, brutalmente reprimida pelas autoridades, confirmou um novelo de contradições próprias dessa cidade aberta que o poder bolchevique iria herdar.
A cidade soviética nasceu com essa rebelião. Mas com maior rigor tê-lo-á sido em 1925, pois foi neste ano que foi rodado o Couraçado Potemkin, o clássico de Sergei Eisenstein tantas vezes apresentado como documento sobre a necessidade e a legitimidade da Revolução de Outubro, que possui Odessa como cenário. A primeira imagem que sobrevém quando pensamos na cidade está associada à sequência do massacre perpetrado pelas tropas czaristas sobre os marinheiros e o povo, em fuga de roldão pela escadaria panorâmica que conduz ao porto. A sequência, que evoca um episódio vivido noutro ponto da cidade, abandonado no filme por diminuir a teatralidade, será apresentada pela propaganda soviética como prova da inexorabilidade revolucionária e da combatividade de um «povo soviético» agora olhado como uno na sua caminhada histórica.
É verdade que Anna Akhmatova, a poeta que afrontou Estaline e por isso foi silenciada, era também natural da cidade, onde viveu até à idade adulta, mas foi a voz épica dos propagandistas do regime, não a sua, que ampliou a imagem de Odessa como microcosmo desse «mundo novo» alardeado pelo regime soviético. Por isso se fez da cidade um enorme centro operário, dotado de um grande estaleiro de construção naval, de uma colossal fábrica de guindastes, de unidades avançadas de produção de têxteis ou da indústria alimentar. Odessa deveria servir de exemplo e semente, e nem a destruição produzida durante a Segunda Guerra Mundial pela ocupação pelas tropas romenas, aliadas dos alemães, que massacraram ou deportaram a quase totalidade dos judeus locais, suprimiu esse objetivo. Após o conflito e quase até ao fim do regime, a produção artística e literária oficial conservou esse objetivo de configuração da urbe como exemplo universal.
Na década de 1930, as palavras de Konstantin Paustovsky, o escritor moscovita que adotara Odessa como sua, ainda cantavam a cidade mundana povoada de «gregos traficantes de escravos, mercadores do Pireu, garibaldistas italianos, capitães de navio e carregadores portuários». Mas esta paisagem multiforme seria rapidamente contrariada por um regime que a todos pretendia uniformizar como soldados ao assalto da História do lado certo da luta de classes. Uma cidade «normalizada» começava assim a nascer e foi essa, a outrora «pérola do Sul», a «cidade-heroína» concebida por Eisenstein, que, desaparecido o império, permanece hoje nostálgica da sua biografia única, replicada em museus, placas evocativas e city tours temáticos, que a ficção romanesca ajudou a edificar. O poeta Ilia Kaminsky, ali nascido, disse que «na sua presente encarnação, há mais monumentos a escritores mortos do que a escritores vivos que ali hoje morem». Talvez o tempo de Odessa como cidade-escrita tenha terminado.
Rui Bebiano
Fotografia de Emil Schulthess. Publicado originalmente na revista LER de Novembro de 2013.