O Natal fez sempre parte dos meus calendários. Embora, como acontece com a maioria das famílias portuguesas, a minha não levasse as datas e as práticas do seu catolicismo muito a peito. Talvez por isso a dimensão de sagrado da quadra sempre me tenha sido em boa medida estranha. Nunca assisti a uma «Missa do Galo» e durante anos mantive a convicção que nela se degolava, de facto, um pobre e indefeso galináceo. O meu Natal era feito só de doces muito doces, da ceia noturna, do horror de comer bacalhau (as voltas que a vida dá: agora um prazer), e principalmente dos presentes mais ou menos acompanhados de uns quantos desapontamentos.
No dia seguinte, era inevitável uma tarde de televisão com um daqueles filmes americanos dos anos quarenta onde, entre flocos de neve, se desenhava um mundo perfeito. No qual até os maus tinham direito à remissão, e os solitários à companhia, em algum momento miraculoso que antecedia a consoada. Como acontecera no Christmas Carol, de Dickens, em que até o avaro Ebenezer Scrooge passou a gostar da quadra, ou com o suave milagre contado por Eça, com um Jesus atento e democrático entrando pela casa adentro de quem apenas precisava de compaixão. Depois, nos anos em que por suposta firmeza ideológica o escrevi com minúscula, mantive, talvez por hábito, talvez por necessidade, a esperança de que cada Natal correspondesse, pelo menos, a um tempo no qual os mais pobres se sentiam menos pobres e as pessoas de boa índole se esforçavam por parecer, ou por ser, generosas.
Esta manhã, numa surtida extemporânea e infeliz a um centro comercial, percebi como tudo isso mudou, tornando-se o seu oposto. Ao som de Bing Crosby, de Doris Day e dos guizos de renas, ressuscitados porque o Natal tem destas particularidades e a visão hollywodesca de uma consoada comercial se tornou modelo global, só encontrei pessoas que se empurravam, umas tentando passar à frente das outras, empregados impacientes com as exigências dos clientes de ocasião, crianças insolentes que quase levavam os pais à loucura, casais desavindos por causa das opções de compra, automobilistas zangados por não encontrarem um lugar para estacionar ou não darem com o caminho de regresso a casa. Milhares de pessoas a arrastarem-se em cumprimento de um dever que mais parecia uma penitência do que a preparação para a proclamada festa da família.
O pior, porém, foi ter-me ficado a convicção de que nunca este ambiente foi tão mau. A falta de dinheiro, o desemprego, a pressão das incertezas, o apagamento dos futuros plausíveis, a desconfiança que pauta o dia de quem se levanta sem saber como se irá deitar, estão a destruir aquilo que restava do calor do Natal. A reduzi-lo a uma pobre caricatura. Fica talvez a secreta esperança de que, pelo menos por uma vez, quando a noite de dezembro descer e estivermos a comer as rabanadas, em vez da velha flâmula anunciando nas alturas a «paz na terra aos homens de boa vontade», os anjos se armem de novo de espadas chamejantes e enviem um raio poderoso que fulmine aqueles que até a fantasia tranquila de um Natal pacífico e de esperança foram capazes de roubar.