Esquerda e direita não são categorias ultrapassadas, como se proclamava anunciando o fim das ideologias. Também não correspondem apenas à clivagem entre quem defende a importância do social, do coletivo e do papel nuclear do Estado, e quem destaca o lugar do individual, da hierarquia e da iniciativa privada. Na realidade, alguns destes fatores são hoje partilhados por ambos os lados, enquanto outros, que há cem anos pareciam separá-los para sempre, certas vezes os aproximam. No primeiro caso encontra-se a valorização formal da democracia, que até partidos da direita mais extrema declaram agora respeitar. No segundo, a tentação do centralismo e do autoritarismo, outrora património da direita, que em nome do «socialismo de Estado» alguma esquerda incorporou e preserva como modelo.
Mas esta aparente confusão de práticas e valores confronta-se com um fator que distingue claramente os dois campos: hoje a direita é muito mais capaz de se agrupar em nome dos seus valores e dos seus interesses mais essenciais, colocando entre parêntesis a gestão das suas divergências internas, enquanto cada setor da esquerda tende quase sempre a colocar, à cabeça das propostas que gere e proclama, a convicção de que elas são as únicas «justas», devendo ser obrigatoriamente aceites pelos restantes. Por outras palavras: a direita sabe unir-se de acordo com valores e princípios programáticos básicos, enquanto a esquerda tende a transformar cada divergência numa querela à volta dos princípios, impedindo um projeto unitário. Por isso uma avança enquanto a outra se barrica.
Em Portugal nada disto é novo, já se sabe, mas este estado das coisas torna-se particularmente dramático para a esquerda numa situação crítica como aquela que atravessamos, quando o jogo democrático já não se pode limitar a referendar em eleições propostas que sejam estritamente partidárias. Aliás, já ninguém acredita em programas demasiado completos. Por isso, perante a degradação do regime e das condições de vida impostos por uma direita que viu na crise económica um pretexto para aplicar o projeto de destruição do Estado social, que jamais tivera a coragem de propor em quarenta anos de democracia, há que unir parte substancial da sociedade com base no essencial, de modo a encontrar uma alternativa consistente.
Tal não se consegue, porém, com vagas declarações de intenção, mas apenas com propostas concretas ou concretizáveis. Mas o que vemos? A maioria do PS insiste mais na mudança de rostos e na proteção de interesses instalados que numa alteração profunda de políticas, rejeitando alianças à sua esquerda. O PCP continua sem perder a tentação da hegemonia e, sem um programa de governo, mantém-se um partido «sindical» de reivindicação e protesto. O Bloco de Esquerda vive um tempo de indefinição, no qual a sua marca identitária que articulava ousadia e compromisso se tem vindo a diluir. O Partido Livre e o Manifesto 3D são forças apenas emergentes, e ainda pouco sólidas, incorporando por vezes alguns equívocos, que propondo uma aproximação às diversas esquerdas enfrentam a rejeição daqueles que desejam unir. Muitos cidadãos sem partido assistem a este espetáculo incrédulos e impotentes, mergulhados na descrença e na apatia.
Reconciliar as diversas partes num projeto político arrojado é, porém, a única via que a esquerda possui para escapar ao bloqueio e construir uma alternativa mobilizadora do eleitorado, sem o qual mudança alguma é possível. Formalmente até parece simples, «bastando» uma aproximação respeitadora das diferenças e centrada nuns quantos princípios essenciais: a rejeição da austeridade como fundamento da vida coletiva; a independência nacional num quadro europeu; uma negociação justa da dívida; a necessária regeneração do Estado social; o desenvolvimento apoiado numa solução estável de governabilidade. E mostrar credibilidade, com rostos, vozes e percursos mobilizadores, para convencer os cidadãos de que é possível recuperar um país tristonho, descrente e deprimido. Difícil? Claro que o é, e muito. Mas a alternativa é deixar tudo na mesma, nas mãos de uma direita coesa e insaciável. Ou seja, tornar tudo pior.
Versão ampliada de um artigo publicado originalmente no Diário As Beiras.