A vida pessoal de Álvaro Cunhal, durante décadas rodeada de um secretismo não ajustado à sua presença pública, e o seu longo trajeto político, só muito parcialmente conhecido do cidadão comum, têm sido alvo de uma atenção crescente. A mudança começou em 1999, com o lançamento do primeiro volume da biografia escrita por José Pacheco Pereira (o quarto está prestes a sair). Apesar de olhada com desconfiança, devido às escolhas políticas do autor, por contornar a insistência do PCP em não disponibilizar os seus arquivos e por ter sido iniciada sem a cooperação do biografado, a obra rapidamente se impôs pelo valor documental, abrindo caminho para o desenvolvimento dos três modelos de abordagem da vida de Cunhal que estão em curso. O primeiro é o do estudo biográfico, apontado ao reconhecimento da sua vida e intervenção, sem qualquer valoração ética ou análise sectária; o segundo, de nítida influência partidária, propõe uma perspetiva controlada, associada ao recorte exemplar e heroico da sua personalidade; já o terceiro modelo centra-se nos pormenores da vida privada, explorando a atenção de um público voyeur e de menor exigência. Todavia, este trabalho pode ser ampliado seguindo outras estratégias. Uma delas passa por confrontar o trajeto do antigo secretário-geral do PCP com o de outras figuras do movimento comunista internacional suas contemporâneas, num exercício que enfatiza inevitavelmente a originalidade do seu caminho.
Um relance sobre a biografia de Santiago Carrillo, o líder do PC espanhol entre 1960 e 1982, apenas dois anos mais novo que Cunhal, abre espaço a um balanço comparativo desta natureza. Em Anatomia de um Instante, Javier Cercas traça dele um perfil positivo, em parte devedor do comportamento que manteve no dia 24 de Fevereiro de 1981, quando os golpistas da direita tomaram as Cortes espanholas na tentativa de anular o processo de transição para a democracia. Sabendo-se o mais odiado dos reféns, por tal motivo aquele que maior probabilidade tinha de ser eliminado, revelou então um destemor bem contrário à atitude de cobardia dos outros deputados. Uma atitude indissociável de uma longa experiência de combate contínuo e arriscado. Carrillo, tal como Cunhal, pertencia àquela estirpe de dirigentes comunistas, forjados e testados nas terríveis décadas de 1930-1940, cuja vida se confundiu com a sua missão. Em Cunhal, sabemo-lo bem, a vida pessoal moldou-se sempre à do partido e da causa que fez sua, a um tal ponto que mesmo as derrotas e os recuos tomaram uma dimensão relativamente irrelevante. Principalmente quando comparada com a «motivação ética» associada a uma «vontade organizada» – as expressões dirigem-se-lhe e são do historiador comunista João Arsénio Nunes –, bem como a uma forte confiança no sentido previdente da História, reafirmada em diferentes circunstâncias, que legitimou todos os destemores e sacrifícios. Já Carrillo, apesar de bem menos consistente no plano teórico, e menos fiável no campo das decisões, mostrou também um ímpeto e uma obstinação que o colocaram no patamar dos dirigentes cuja vida se confundiu sempre com as suas certezas. Ainda que, no seu caso, muitas vezes elas tenham sido transitórias.
Existe, porém, uma linha de fronteira que os separa claramente na personalidade e nas escolhas. Desde logo no plano da coerência política. A vida pública de Santiago Carrillo teve fases distintas e contraditórias, como acaba de demonstrar o historiador britânico Paul Preston numa biografia sintomaticamente chamada El Zorro Rojo (A Raposa Vermelha). Na primeira metade, em Espanha ou no exílio, dos meados dos anos trinta até meados dos setenta, foi, do lado da esquerda, contraditoriamente admirado por alguns como um revolucionário e um pilar da luta antifranquista, enquanto outros o consideravam um rígido estalinista. Envolvido, como líder das Juventudes Socialistas, nos acontecimentos revolucionários de 1934, após dezasseis meses de prisão abandonou o PSOE, traindo a fação de Largo Caballero, o «Lenine espanhol», do qual se aproximara, ao levar o movimento juvenil para o Partido Comunista. Esta transferência, tal como a sua incondicional lealdade a Moscovo, foram recompensadas, após a vitória da Frente Popular e durante a Guerra Civil, com uma rápida ascensão nas fileiras comunistas. Aos 21 anos, tornou-se então comandante dos serviços da ordem pública numa Madrid sitiada pelos franquistas, adquirindo triste notoriedade como responsável pela eliminação física de prisioneiros e dissidentes. Após o conflito, revelou-se um empenhado apparatchik, manobrando influências e atritos internos que o projetaram rapidamente para o topo do partido.
Já na segunda metade da carreira política, dos meados dos anos setenta até à morte em 2012, passou a ser visto como uma espécie de tesouro nacional, em boa parte devido ao seu contributo para consolidar o restabelecimento da democracia na companhia dos franquistas moderados. Nada de estranho, se tivermos em linha de conta a sua aproximação às teses, sobre uma «versão democrática da ideologia comunista», que sob a bandeira do «eurocomunismo» então partilhou com o italiano Enrico Berlinguer. A partir do seu regresso a Espanha em 1976 e até 1981, enquanto se batia no interior do partido contra diversas fações internas, foi-se transformando num garante da integração do PCE na nascente democracia, da qual se tornaria uma espécie de pilar. Ultrapassada esta fase, voltou ao seu papel de líder comunista, mas acabou atolado num conflito que conduziu à destruição do partido que ajudara a construir e que havia dirigido, deixando-se ao mesmo tempo envolver em homenagens e panegíricos vindos da classe dirigente espanhola, desde o rei a importantes figuras da direita, para quem era agora o simpático «Don Santiago». Ao mesmo tempo, largos setores da esquerda jamais lhe perdoaram as sucessivas tergiversações e deslealdades, terminando a vida sem o respeito do campo que durante longas décadas fora o seu.
Nada de mais diverso do caminho tomado por Álvaro Cunhal. Independentemente das inevitáveis inflexões táticas que foi assumindo, este conservou-se fiel às convicções e ao modelo de sociedade futura que adquirira na juventude, sem contemporizar mais do que o essencial com as circunstâncias. É verdade que o modelo de transição português para a democracia foi diferente do espanhol, menos sujeito a compromissos precários, menos extremo; mas mesmo nos instantes de maior empenho revolucionário, a sua posição foi sempre a resultante de uma combinação de certezas com um profundo sentido prático e um desejo tenaz de jamais renegar um passado considerado fundador. Em O Partido com Paredes de Vidro, lançado em 1985, em contexto «pós-revolucionário», declara sem equívocos que a transparência que propõe passa por não questionar «experiências com validade já demonstrada», que, justamente por o serem, «não corram o risco de lhes ser atribuído apenas valor conjuntural». No prefácio à 6ª edição da mesma obra, saída em 2002, treze anos depois da Queda do Muro e do vendaval que varreu o mundo do «socialismo realmente existente» no qual em boa parte acreditara, reafirmará que todos os princípios enunciados na edição inicial «mantêm, a nosso ver, significativa atualidade», anunciando, «contra as furiosas falsificações da história a que assistimos», a exemplaridade da revolução russa de 1917 como inauguradora de «uma época grandiosa da história da Humanidade». Nada de comparável, pois, com as completas inflexões assumidas por Carrillo.
Não importa confrontar dois trajetos tão diferentes encarando qualquer deles como mais próximo ou mais distante da perfeição ética, mais ou menos adequado a realidades movediças que, apesar de geograficamente próximas, foram historicamente distintas. Eles foram o que foram e o tempo que ocuparam não anda para trás. Mas a comparação pode fornecer uma chave para compreender melhor o impacto que cada um dos dois homens teve nas suas circunstâncias e a memória que deles herdámos. A diferença é notória: enquanto Cunhal é recordado, no centenário do seu nascimento, como um português cuja vida e cuja sombra, simpatize-se ou não com elas, permanecem presentes, Carrillo já foi arrumado nos grandes depósitos da História. De onde dificilmente alguém sai vivo.
Publicado originalmente na revista LER de Janeiro de 2014.